Professor, ensaísta e ficcionista, Jorge Margarido publicou em 2016 uma obra de ficção policial inspirada na atmosfera gótica da Sé da Guarda. Fazendo da catedral o ponto nevrálgico da ação, “Toleimas e Paranoias nos Arrabaldes da Sé” traz à cena um sacristão com transtorno autista, um padre com consciência pesada, um inspetor descontraído, um perspicaz detetive amador, um afável assassino a soldo e um misterioso “serial killer”. Cruzando a normalidade hodierna com lenda urbana e narrativa de enigma, o romance convoca quer personagens de inteligência invulgar, quer tipos sociais comuns, quer loucos de rua, alguns deles ainda bem presentes na memória coletiva guardense.
O cerne da trama: Miguel, o sacristão, é induzido pelo seu protetor a procurar um tesouro que se diz existir na Sé (piscadela à parábola do tesouro escondido de Jesus) e vê os seus esforços culminarem na descoberta de uma mensagem, revelando-lhe o segredo da ausência paterna. Meses depois, um artista plástico forasteiro vem montar o seu cavalete na Praça Velha. Coincidência ou não, é encontrado assassinado “o Pide”, um alienado sem abrigo, na via pública. Nos dias seguintes, a esse crime seguir-se-ão mais quatro enquanto parece pairar sobre o tesouro uma espécie de maldição.
A atmosfera narrativa e a ação a decorrer entre os anos 2009-2011 inscrevem-se na literatura policial contemporânea. Além de fazer da Guarda o palco de uma investigação criminal, o que é já por si uma inovação literária, o foco do enredo trata com quase igual importância as vítimas, os homicidas e os investigadores, mostrando ao leitor como uns morrem, outros matam e os últimos realizam a sua “performance” investigativa. Num volume de 393 páginas, dividido em 27 capítulos, multiplicam-se histórias dentro da história, abordando questões paralelas à indagação, como as rotinas e passatempos de uns e de outros, os laços entre amigos, entre homem e mulher, entre pai e filhas. Espraiando-se nos primeiros capítulos em minuciosas informações sobre os protagonistas e a Sé (exposição da situação inicial), é a partir da terceira vítima que a investigação acelera o ritmo narrativo (pista concreta e complicação) e se precipita para o desfecho (clímax, final surpreendente e epílogo da clarificação).
Como o próprio título é disso exemplo, o tom dominante do livro desdobra-se entre situações caricaturais e reflexões mordazes. Repare-se na frase: «Ser-se inteligente é saber manter-se na mentira durante o tempo necessário», que se oferece como um belo exemplo de cinismo pragmático. A voz do texto faz também notar ao leitor que a sociedade portuguesa pós-moderna é «comandada por burocratas politizados, teoréticos universitários e cónegos laicizados ajuizadores do civismo a doutrinar», caracterizando, desta feita, as entidades que controlam o discurso dominante. Através do humor ácido e do gosto pelo comentário das minudências da vida rotineira da urbe, o narrador descreve uma Guarda sob o signo da hipocrisia social, do desconforto térmico e da alienação moral. Se dá atenção aos marginalizados com problemas de saúde mental, não poupa guardenses, polícias, beatas da Sé e responsáveis pelo urbanismo. Encena a cidade do Interior a que se nega qualquer importância, a não ser quando crimes hediondos atraem como moscas repórteres das televisões nacionais.
Meticulosamente escrito e narrado na terceira pessoa, o que favorece a montagem da urdidura diegética e o suspense, o romance de Margarido percorre esse jeito melancólico de viver a Guarda, os seus lugares e as suas gentes. Se este “thriller” tem o poder de transfigurar a Guarda, tornando-a mais cativante, há de também inspirar os guardenses para a tornar nesse espaço de desenvolvimento urbano e criação de oportunidades que bem merecem…
A Guarda como cenário de mistério e mortes
“Se este “thriller” tem o poder de transfigurar a Guarda, tornando-a mais cativante, há de também inspirar os guardenses para a tornar nesse espaço de desenvolvimento urbano e criação de oportunidades que bem merecem…”