A fotografia

Escrito por Fidélia Pissarra

“Este exercício, o de ser fotógrafo e fotografado ao mesmo tempo, foi coisa que a senhora La Garde não praticou, de todo, naquela fotografia em que, numa espécie de «cópula com o mundo material», nos surge de pernas traçadas, em pose Sharom Stone do filme “Atração Fatal”. “

Confessando que se sentiu perversa ao fotografar pela primeira vez, Diane Arbus, segundo a própria, ter-se-á tornado fotógrafa seduzida pelo atrevimento que achava no ato de fotografar. Sentimentos, certamente suscitados pela «intromissão, invasão, deformação e exploração» que considerava alcançados através da câmara fotográfica. Mas nessa altura ainda não se tinham inventado as imagens digitais. Tivesse tal ocorrido hoje, quando todos somos “fotógrafos” e “fotografados”, e nem o atrevimento, nem a perversidade interfeririam no papel assumido. Pois agora o atrevimento terá sido absorvido pela disponibilidade, às vezes exagerada e compulsiva, de se ser registado em imagens a fazer tudo e mais alguma coisa e a perversidade ter-se-á deslocado do lado do fotógrafo para o lado do fotografado, para além de todos poderem ser até uma coisa e outra, em simultâneo. Este exercício, o de ser fotógrafo e fotografado ao mesmo tempo, foi coisa que a senhora La Garde não praticou, de todo, naquela fotografia em que, numa espécie de «cópula com o mundo material», nos surge de pernas traçadas, em pose Sharom Stone do filme “Atração Fatal”. Não, aquilo é outro exercício. E passará mais por recorrer a uma espécie de tecnologia psíquica que nos conduza ao estado mental em que a fotografada nos pretende, o de aceitar que além de pobres, também somos impotentes para deixar de o ser, do que outra coisa qualquer. É que tudo, desde o empoeirado colar de pérolas até às roupas da mesma marca das que o diabo costuma vestir, naquela fotografia é a prova, provada, do que Sontag afirma: «A fotografia passou a ser também um importante meio de controlo familiar e político».
A crer nos registos digitalmente disponíveis, a boa da senhora La Garde vai já nos 67 anos. Portanto, só a boa vida que sempre levou explicará o à vontade e a figura imaculada, na idade em que a maioria das comuns mortais já só ambiciona disfarçar os pneus à volta da cintura, lhe permitem ainda posar daquela maneira. Aliás, permitem-lhe posar daquela maneira e permitem-lhe também não dar mostras de, tão cedo, vir a estar disposta a abdicar do poder que tem sobre todos nós. Tivesse ela levado vida complicada e, de certeza, há muito se arrastaria em ansiosos suspiros pela reforma. Assim, entre apuradas escolhas dos sapatos, que custam mais do que o que ganhamos num mês, para não destoarem da restante indumentária e a escolha dos sofás para a casa de campo, prefere continuar a trabalhar. Está bem que, à semelhança dos que sempre teve, o trabalho que tem, enquanto presidente do Banco Central Europeu, não será de grandes canseiras, mas lá que na minha opinião já se podia ir dedicar a outra coisa qualquer, já. Parecendo não ser esse o seu entendimento, talvez não fosse mal pensado inventar qualquer coisa capaz de limitar aquela discricionariedade toda com que, a partir da sua mundivisão individualista, esta mulher exerce o cargo. É que, como se tudo isto não bastasse para nos nausear, parece que a boa da senhora La Garde, lá do alto deste seu cargo, ainda gosta de nos lembrar, e confirmar, a insignificância em que as nossas vidas se traduzem para gente como ela através de lacónicos e lapidares «são escolhas, é a vida».

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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