A falar com os meus botões

“25 anos depois da frase de Guterres “no jobs for the boys” alguns continuam a considerar normal que o Estado esteja ao serviço de interesses partidários ou particulares: deviam sentir vergonha”

Na tarde do passado dia 13 pretendia, como é habitual, assistir à entrega do Prémio Eduardo Lourenço à Fundação José Saramago, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço. Porém, não o pude fazer pois, à mesma hora, estava no Tribunal onde fui constituído arguido pelo crime de difamação – na verdade, neste momento sou arguido em mais do que um processo, todos no exercício da minha profissão de jornalista, por atentar supostamente contra a honorabilidade de alguém ou por exercer a minha atividade de escrutínio público e utilizar o meu direito (absoluto) de liberdade de expressão. Legitimamente, há quem tenha opinião diferente. E há quem interprete de forma díspar a atividade jornalística. Ora, como tão bem nos ensinou George Orwell, «jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade».
Assim, em vez de conhecer pormenorizadamente os argumentos do júri do Prémio que leva o nome do mais importante pensador português contemporâneo ou ouvir Pilar del Rio a dissertar sobre o Nobel da Literatura e da relação entre Saramago e Eduardo Lourenço, ficava a saber que por termos noticiado que os nomeados da Secretaria de Estado instalada na Guarda no anterior Governo passavam a ter emprego público, através de um concurso público que muitos consideram “feito à medida”, naquilo que, desde 1995, passou a ser designado por “jobs for the boys” (expressão tão bem “inventada” por António Guterres quando chegou ao Governo para travar a captura de lugares no Estado por militantes do PS – “no jobs for the boys”). Ou seja, aqueles que passados mais de 25 anos continuam a considerar normal que o Estado esteja ao serviço de interesses partidários ou particulares, em vez de sentirem vergonha por se apropriarem de forma menos transparente do que é de todos e exigirem regras transparentes para a contratação pública, perseguem e processam o mensageiro que no exercício das suas funções de escrutínio da vida pública informa ou comenta contratos públicos. Como aqui escrevi (https://ointerior.pt/opiniao/si-hay-poder-soy-contra/), a imprensa tem um papel vigilante e escrutinador, «os jornais são, por princípio, contrapoder. Não porque tenham de ser contra o poder, mas porque têm a missão de informar de forma equidistante dos poderes; têm de interrogar e escrutinar os governos; têm de revelar o que está para além do dizível, de contribuir para uma sociedade mais informada, de divulgar o que muitas vezes é escondido do cidadão, de partilhar com todos o que só alguns sabem, de publicar o contrário às vontades de quem domina, de dar voz aos mais fracos e de promover a liberdade e a liberdade de expressão. Nos jornais é assim! Tem de ser assim!» Como escreveu Baptista-Bastos: «Não há jornalismo neutro, porque o jornalismo é, sempre e sempre, a oposição do direito e do facto contra os inimigos da liberdade de dizer». Não basta dizer que se é favor da liberdade, é preciso atuar em conformidade; não basta clamar “Je suis Charlie” e depois atuar como se ainda estivéssemos no tempo da “outra senhora” e recorrer aos tribunais para impedir a liberdade de expressão e o livre escrutínio dos poderes públicos…
Sobre isto meditei melhor dois dias depois. Enquanto assistia ao concerto de César Prata no TMG (“Cantar com os meus botões”) refletia sobre a minha teimosia de estar sempre do lado errado da vida pública: o lado de ser contrapoder, da liberdade de expressão, do direito a informar e ser informado, contra a censura, contra os esquemas e os poderes, o amiguismo ou o velho vício nacional do jeitinho e da “cunha”… Há mais de 25 anos que é assim. Toda uma vida. E enquanto ouço o mestre de cancioneiro popular que neste concerto se atreveu a entrar por experimentalismos, pela eletrónica, por um mundo novo de sons, pela conjugação entre o acústico e o processamento de sons através da aplicação de pedais de efeitos, transformando e reinterpretando músicas do seu habitual repertório de temas de tradição portuguesa em caminhos musicais novos. Um atrevimento. Uma audácia. Depois do inovador ambiente sonoro de “Rezas, Benzeduras e outras Cantigas”, César Prata, a partir do mais tradicional cancioneiro popular da região, deu mais um salto, arriscando e surpreendendo. E enquanto César Prata transportava a música tradicional para a contemporaneidade, eu falava para os meus botões sobre a sociedade que queremos, sobre democracia e liberdade, sobre jornalismo e a liberdade de opinião. Como escreveu António Paulouro, «claramente alinhamos ao lado dos que não se resignam e tudo sacrificam, sem mágoa, aos superiores interesses do engrandecimento do concelho» e da região.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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