A epidemia de 1853-56 no distrito da Guarda

Escrito por Francisco Manso

«Terrível Flagelo! Tristes dias e mais tristes para quem pereceu arrebatado pela ira do Senhor» – Palavras mais acertadas e atuais não podia ter o padre Lourenço Tourais Chorão, vigário de Aldeia da Ponte, ao assistir à morte de 5, 6 paroquianos por dia

Ponte da Aldeia, da Ponte
1col. A. Manso

Há cerca de um ano começámos a ouvir falar de um vírus, do qual pouco ou nada se sabia. Mas como as notícias vinham de longe, da China, o tema quase não passava de uma curiosidade. Rapidamente, à velocidade do avião, mas utilizando qualquer meio de transporte, chegou até nós. Altamente contagioso, não sabendo o que fazer, voltou-se a um remédio já antigo, criando uma fronteira sanitária, de amargas lembranças na região.

Neste artigo analisamos a forma como se desenvolveu e o impacto que teve uma outra epidemia, de cólera, que em 1853-56 avassalou o país e o distrito da Guarda.

Um retrato, ainda que indireto, da dimensão da tragédia que as epidemias tiveram, poderá ser dada pelo número de médicos falecidos nessas circunstâncias.

Os médicos não eram, é evidente, os únicos protagonistas nessa luta, mas é deles, e de um ou outro barbeiro, que ficou algum registo. É injusto, mas era a sociedade de então. Alguns deles sobreviveram a essa luta, nela se distinguiram e por via dela virão a ter nomeada, como verdadeiros heróis nacionais, como foi o caso do dr. Francisco Sobral, cirurgião-Mor do Regimento de Infantaria nº12, aquartelado na Guarda.

Portugal: as epidemias do séc. XIX

Foi um século trágico para o povo português. Viveu a maior parte desses anos no meio do terror que as invasões francesas e a guerra civil trouxeram, e em que o medo do tifo exantemático, da cólera, ou de outras doenças eram apenas um de entre vários males.

Dessas doenças, as que provocavam verdadeiro pânico eram as epidemias de peste bubónica, cólera-morbo ou tifo exantemático, das quais, rico ou pobre, ninguém estava a salvo. Por isso, «Encerrar as fronteiras terrestres e limitar a mobilidade era a única solução possível para, num curto espaço de tempo, tentar travar a propagação da febre-amarela e da peste, no crepúsculo de um estado autoritário, capaz de mobilizar militares e civis». Os cordões sanitários, terrestres ou marítimos, que hoje seriam também aéreos, eram considerados como a forma mais eficaz na defesa das fronteiras perante surtos vindos de outros países ou regiões. Quase que se vulgarizaram, e passaram a ser o expediente usado pelas autoridades liberais para enfrentar as epidemias vindas de Espanha com os viajantes, os comerciantes, os contrabandistas ou as gentes da raia.

As terras, por sua vez, defendiam-se perante qualquer sinal da doença fechando as portas para impedir a entrada de eventuais infetados, e exigindo a apresentação de uma carta de saúde, comprovando que não tivera contacto com a doença.

Evolução da epidemia de cólera de 1855 no distrito da Guarda

Em 1855 a cólera manifesta-se, mais uma vez, em Portugal, onde irá provocar cerca de 22.700 vítimas até 1857, com uma taxa de mortalidade de 45%! Sigamos, de perto, um relato dessa época.

A epidemia «rompeu ao nordeste pelo districto da Guarda, – um dos mais salubres de Portugal… entrou por Barca de Alva e S. João da Pesqueira, duas localidades do distrito da Guarda… e accometeu sucessivamente os districtos de Vila Real, Bragança, Porto, Aveiro, descendo com a maior celeridade pelo rio Doiro, e assolando as povoações de uma e d`outra margem até à cidade do Porto», e daí irradiando rapidamente até ao sul do país.

Na segunda fase a epidemia desenvolve-se em Espanha, pela província de Salamanca. De San Felices de Gallegos a Ciudad Rodrigo, onde teria chegado no mês de julho. Daí, transpondo a raia seca, passou a Portugal, afetando os concelhos de Figueira de Castelo Rodrigo e Sabugal, poupando, surpreendentemente, o de Almeida.

Na terceira fase a cólera atinge o concelho de Pinhel, levada, talvez, por gente infetada de outros concelhos vizinhos. Na altura, talvez por ignorância, pois «Os nossos visinhos hespanhoes lutavam já com o flagelo cholérico, e, não obstante continuou ainda por algum tempo inalterável o estado sanitário do districto. Seus habitantes, espectadores desacautelaudos do que ocorria em Zamora, Ledesma, Salamanca, Moraleja, Ciudad Rodrigo, e Navas Frias, e outras localidades da raia do paiz vizinho, conservaram-se tranquilos, como quem não receiava da catástrofe, que lhes estava eminente; e eis que de repente a cholera invade o districto…».

As primeiras, e mais significativas, manifestações de cólera ocorreram em povoações de concelhos distintos, situados ao longo da fronteira com Espanha, mas não de forma continua. O concelho de Almeida, situado entre Castelo Rodrigo, Pinhel e Sabugal, não teve qualquer caso de cólera, ao contrário dos seus vizinhos. Isso só pode mostrar que as fontes de contágio foram diferentes.

Pesqueira

Em S. João da Pesqueira, que até 1855 pertencia ao distrito da Guarda, tudo começou quando alguns médicos observaram que nalgumas povoações da margem esquerda do Douro havia casos isolados de uma doença com características peculiares. Repararam, também, que alguns marinheiros que iam nos barcos carregar cereais a Veiga do Torrão, ali perto, mas já em território espanhol, apresentavam sintomas idênticos. No entanto, não se deu muita relevância ao caso, e os médicos não participaram o caso ao Governador Civil da Guarda, Francisco de Almeida Freire Corte Real, que era a autoridade máxima a nível distrital. Apesar de tudo, o boato começou a circular na Guarda e o delegado local do Conselho de Saúde Pública do Reino mandou averiguar o caso. Por esta altura aparecem em Pesqueira já alguns casos duvidosos que alarmaram a vila. O delegado de Saúde Pública da Guarda, Francisco José Pinto Bravo, parte para a vila com urgência e depois de reunir com outros facultativos, Francisco António do Amaral, médico em Trancoso, e com o delegado de saúde da segunda divisão militar, e apesar do médico João Maria Lacerda, que residia em Prova, concelho da Meda, não ter comparecido, declarou oficialmente a existência de cólera. Morreram 75 pessoas na vila.

Barca de Alva

2Estação de Caminho de Ferro de Barca de Alva, ativada após a epidemia. Com ela findaram as filas de barcos.
3A. Manso

De Pesqueira, a cólera, inflexível, seguiu para Barca de Alva. Pequena povoação, situada num profundo vale, era o primeiro porto de entrada no Douro português. Por isso, ali se reuniam centenas de barcos que eram a principal forma de abastecimento de trigo ao Porto, quase todo ele vindo de Espanha. A primeira manifestação de cólera ocorreu a 28 de abril, sendo atacados os barqueiros das tripulações dos barcos dos cereais. Pensa-se que ali teriam ocorrido os primeiros casos do distrito, mas que teriam passado despercebidos. A epidemia já se tinha manifestado em Veiga do Torrão, distante meia légua, que tinha contactado com gente de Salamanca, onde então a cólera grassava. Terminou em finais de maio atacando 28 pessoas, doze das quais faleceram, incluindo as falecidas em Escalhão, que teriam sido contaminadas por gente ida de Barca de Alva.

Foz Côa

A 28 de março, o médico da vila observou um caso que levantou suspeitas. Um homem de 37 anos, alto e vigoroso, foi roçar lenha. No regresso a casa sentiu-se mal e com sintomas coléricos. Contaminou a mulher, que se salvou, e dois filhos, que acabaram por morrer. Nesta luta faleceu, em 1855, o médico de partido de Vila Nova de Foz Côa, António José Costa, que ali se encontrava a convite da Câmara para tratamento dos coléricos e que, «com a maior abnegação, abandonou a família e foi residir no local onde a epidemia mais grassava. Lutando no seu tratamento sem descanço, sucumbiu, deixando a sua infeliz família desemparada, e talvez precipitada no abismo da miséria e orfandade». Morreram no total 142 pessoas.

Mós

A cólera chegou a Mós, Vila Nova de Foz Côa, em meados de abril de 1855, atingiu o pico em agosto e terminou, subitamente, em setembro. Matou uma em cada três pessoas infetadas, cobrindo de luto a população. Quando terminou, o povo considerou que teria intervenção divina da Mãe de Jesus. Em sinal de agradecimento mudou a festa anual do padroeiro, S. Pedro, para a de Nossa Senhora da Soledade.

Ervedosa

Nesta freguesia, atualmente pertencente ao concelho de S. João da Pesqueira, a epidemia foi declarada 8 de julho e terminou a 26 de setembro. Morreram 27 pessoas.

Almendra

Começou a 21 de julho, dia de intenso calor, e terminou a 31 de agosto. Tudo teria começado com um homem que se tinha deslocado a Poiares, em Trás-os-Montes, onde teria sido contagiado. No regresso transmitiu a doença à mulher e esta à irmã, tendo falecido ambas. Para evitar males maiores muito teriam concorrido as medidas tomadas pelo pároco, Francisco Giraldes, e o regedor, Bernardo António Felízio.

Escarigo

Esta freguesia do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, embora terra de pouca água e de má qualidade, não era, contudo, insalubre. O surto de cólera começou no dia 26 de agosto e terminou a 12 de setembro.

Almofala

A epidemia começou no dia 19 de setembro, tendo vitimado 20 habitantes.

Aldeia do Bispo

4Autor Padre Carlos Manso
5Col. A. Manso

Nesta freguesia do concelho do Sabugal situada «numa esplanada varrida de todos os ventos, com habitações onde se notava alguma limpeza e aceio», a cólera manifestou-se no dia 16 de julho e desapareceu a 11 de agosto. Atacou 54 pessoas, tendo falecido 14. Na altura grassava com intensidade um surto colérico em Navas Frias e San Martin de Trevejo, em Espanha, de onde teria vindo a doença, dadas as relações diárias entre estes povos, sobretudo no “comércio furtivo”.

Tudo indica, de facto, que assim tenha acontecido, pois os animais da aldeia eram pastoreados em terrenos propriedade de portugueses, mas situados em Navas Frias, gerando um fluxo diário entre estas povoações.

Já antes, em 1833, quase no final da guerra civil (entre liberais e miguelistas), surgiu um violento surto de cólera na zona raiana do Sabugal, e Aldeia do Bispo foi uma das terras mais atingidas. Só até julho de 1834 morreram 37 pessoas, tendo os enterros passados a ser feitos na capela de Santo Antão por não haver lugar no cemitério.

Aldeia Velha

O surto colérico teve início a 14 de agosto e terminou a 22 de setembro. Atacou 64 pessoas, tendo falecido 19. Com quase toda a certeza, teria tido origem em Aldeia do Bispo, pois eram povos, desde sempre, com uma relação de proximidade muito intensa.

Freixedas

Freguesia do concelho de Pinhel, era considerada de boa qualidade de ares e salubre. O início do surto colérico ocorreu no dia 20 de agosto e terminou a 23 de setembro. Tudo teria começado quando um comerciante de peles foi a Almendra na altura em que ali grassava a peste e se alojou durante dois dias numa casa onde já havia infetados. Regressou a Freixedas, sua terra natal, e sem o saber levou o mal à sua família, tendo falecido uma irmã. Morreram 38 pessoas, mais de metade dos infetados.

Alverca

Neste antigo concelho o surto epidémico começou 1 de setembro e terminou a 6 de outubro. Atacou 47 pessoas e vitimou 18. A cólera teria sido levada das Freixedas para Alverca por moleiros.

Pinhel

A cólera manifestou-se a 8 de outubro e durou apenas 13 dias. Fez 20 vítimas entre 78 infetados.

Cortiçô

Nesta freguesia, pertencente ao concelho de Algodres até ser integrada no de Fornos de Algodres em 1855, o surto colérico teria sido introduzido em 25 de setembro por um cardador que tinha vindo do Douro quando ainda ali lavrava a epidemia. Convalescente, mas não curado, regressou a casa sem as devidas cautelas, semeando o pânico entre «os seus habitantes muito pobres, a viver em casebres, quase sem cobertura, expostos a todo o rigor do tempo. A sua alimentação constante e unica é o pão de senteio, e o de milho, batatas, hortaliças e algumas frutas. Condemnados a excessivos trabalhos de campo, quando começa a estação calmosa, o corpo enerva-se-lhes, as forças diminuem, e graves moléstias se declaram…» Teria feito 21 mortos entre 25 infetados, em oito dias! A Câmara de Fornos de Algodres «isolou a povoação, estabelecendo um cordão sanitário por meio de guardas postos às bocas dos caminhos… chegando mesmo a requisitar tropa, e suspendeu o mercado da vila». Na mesma altura foi criado um hospital em Cortiçô, onde se distinguiu o barbeiro de Figueiró da Granja, Cândido da Costa Cabral.

Aldeia da Ponte

Nesta freguesia, que com a extinção do concelho de Vilar Maior, em 1855, passou para o de Sabugal, a cólera surgiu a 3 de outubro e terminou a 17 do mesmo mês. Atacou 79 pessoas e vitimou 39.

Causas da epidemia

Entre outras razões, salientava-se o papel do vinho, pois «não pode deixar de tomar em consideração a má qualidade do vinho, ou antes agua-pé, de que faziam uso os trabalhadores e as pessoas menos favorecidas da fortuna, como uma das causas predisponentes para o desenvolvimento da epidemia e gravidade dos ataques».

Também o medo era considerado uma das causas da doença, e justificava-se o facto pelas várias experiências feitas por vários cientistas internacionais. «O terror é uma das poderosas causas para o acometimento da moléstia…» Por isso, recomendava-se a boa disposição!

Medidas tomadas

Organizar hospitais provisórios, criar lazaretos, fornecer aos doentes uma refeição sadia e dar-lhes remédios, e que fosse evitada toda a «ostentação fúnebre», foram algumas das medidas postas em execução.

Estabeleceu-se um posto fiscal em Penedono e aproveitaram-se os postos já existentes. Foi criado um cordão sanitário até ao rio Douro, ao longo da raia seca, para além de outros de caráter mais localizado. O objetivo principal era circunscrever a epidemia e promover a sua extinção.

Foram proibidos, «principalmente nos concelhos da raia, de todos os mercados e feiras, a que costumam concorrer pessoas e géneros vindos dos pontos de Hespanha inficionados de cholera».

Passou a ser necessário um passaporte de saúde assinado pelo facultativo e magistrado da terra. Mas as medidas tomadas eram geralmente impopulares e pouco compreendidas. A proibição, em junho de 1855, das feiras e mercados levantou uma onda de protestos pela sua importância na economia regional. Dizia-se, que era «uma calamidade superior à transmissão do mal» porque este só vem aumentar a miséria.

«Vão-se suprimindo todas as feiras e romarias! Querem prevenir um mal incerto com uma calamidade inevitável. Nos distritos da Guarda e Viseu pouco falta para chegarem a proibir a entrada de pessoas de fora do distrito. Não sabem que assim incutem o terror, e que este é uma das poderosas causas para o acometimento da moléstia».

Foi assim há 150 anos, veja-se a semelhança com os dias de hoje!

Francisco Manso
Administrador hospitalar e investigador da história local e regional

 

N.R.: Francisco Manso inicia nesta edição uma colaboração mensal com O INTERIOR

Sobre o autor

Francisco Manso

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