O debate coloca-se sobre se a vigilância nos protege, se as cidades pejadas de circuitos de vídeo nos dão segurança, se os telemóveis com rastreadores e identificadores nos melhoram a existência, se os carros cheios de aplicações nos asseguram menos roubos.
Um chip na orelha diminui os raptos de crianças? A realidade é que caminhamos para uma sociedade em que o eu é mais exteriorizado, mais dependente da exposição, mais medido por estatísticas de visualização nas redes sociais. Importa pouco os conteúdos, mas é muito importante a empatia da rede. Há uma barbaridade de conteúdos e de futilidades que se tornam virais e projetam os eus dinâmicos para fora de qualquer recato. Esta gente sem recato importa-se com a vigilância? De todo!
A sociedade construída das cidades inteligentes com portas com códigos, com aberturas biométricas, com identificações por leitura ocular, com mobilidade e refeições usando aplicações em telemóveis, com pagamento por cartão ou “pay pal”, com fácil sequenciação dos movimentos das pessoas é uma existência totalmente entregue à eventualidade de uma prepotência da raiz do pensamento. O poder sabe que aquela pessoa que escreve aquelas coisas, que contraria as decisões do comando, que prefere menus misturando sabores, que lê aqueles textos, que opta por determinadas leituras e cinemas, também é dona de um negócio, tem clientes da oposição e usa o “caixa bank”. Podem iniciar estratégias de prejuízo sobre o incauto. Nestas obsessões se constrói o ciúme patológico, destas necessidades nasce a relação contundente com a individualidade, a morte do eu discreto e recatado. O patrão vigia tudo por Internet. Sabe o que se diz, o que se faz, controla cada minuto dos seus empregados.
Uma cidade inteligente parece ser uma cidade segura com grandes adeptos e com futuro, mas se for dirigida por tiranos pode tornar-se um império do mal. Então o problema é impedir o poder dos tiranos que se apropriam da inteligência dos sistemas. E como faremos isso? Vamos ao futebol por exemplo mínimo. Lavagem de dinheiro, corrupção, falta de autenticidade, mercantilismo humano, tudo num mundo carregado de vigilância, suposta transparência e sobretudo mediatismo e exposição a rodos. Já para os adeptos, a colocação de videovigilância nos estádios tornou-os mais seguros e as famílias voltaram às bancadas dos países que escolheram esse caminho. Não acabou com o hooliganismo nem a estupidez infinita que se gera do fanatismo do adepto. Esse é outro problema que encarna a falta de perpetiva, a falta de hierarquia de valores, a ausência de focos de importância nas vidas de muita gente.
Então sabemos que vigiar não garante segurança, mas pode ajudar. Sabemos que o controlo da informação pode conduzir a desigualdades de tratamento, mas também pode balizar. Conhecemos o risco da informação nas mãos de déspotas e percebemos as vantagens do que seria se fossemos melhores pessoas. As vantagens são fáceis de vender para uma cidade inteligente. A China leva vantagem nesta ideia e mostra-nos como podemos condicionar as pessoas e os seus pensamentos a uma liberdade segura, mas cercada, murada, definida por padrões éticos e morais que os déspotas desenham e impõem. E porque havemos de ler os mesmos livros, ouvir as mesmas canções, recitar os mesmos poemas? O último livro de José Carlos Ruiz “Incompletos” (ainda sem tradução portuguesa) é já uma janela neste universo da «pós-felicidade», um bolso das pessoas «impreenchidas», indigentes mentais, «inconcluídas» do eu, sujeito próprio sem externalidades.
A dicotomia vigiar/ proteger
“Uma cidade inteligente parece ser uma cidade segura com grandes adeptos e com futuro, mas se for dirigida por tiranos pode tornar-se um império do mal.”