A descentralização

“É com base em negociações entre a gestão governativa e a autárquica que é possível avançar no desenvolvimento dos territórios, alocando os recursos necessários, sejam financeiros ou humanos.”

O processo de descentralização e de ulterior transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, iniciado em 2018, com a Lei Quadro 50/2018, de 16 de agosto, e a criação da Comissão para a Descentralização, a introdução da componente eletiva nas Regiões Administrativas e a recente concretização da transferência de competências, agora plasmada no Orçamento de Estado (OE), é, no seu conjunto, uma reforma muito consistente do Portugal democrático e representa confiança nos autarcas e o desejo de melhorar a prestação dos serviços do Estado aos cidadãos.
O Partido Socialista sempre valorizou o poder local, reconhecendo e apoiando o trabalho desenvolvido pelos autarcas na administração do território. O processo de descentralização em curso, que se segue à introdução da componente eletiva nas regiões administrativas, representa, de facto, uma consistente reorganização do Estado com real impacto na vida das populações e introduz uma significativa mudança nas áreas de gestão autárquica. Por isso julgo de interesse propor uma pequena reflexão acerca da desvinculação da Camara Municipal do Porto da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), a que se seguiram ameaças de outras, felizmente poucas, autarquias.
Antes de mais, convém relembrar que a ANMP não tem partido, constituindo um património democrático em que participam, com igual dignidade, todas as autarquias, independentemente da sua dimensão. Só assim é possível defender a representatividade de todas as autarquias sem divisionismos ou isolacionismos, garantindo unidade na ação.
É com base em negociações entre a gestão governativa e a autárquica que é possível avançar no desenvolvimento dos territórios, alocando os recursos necessários, sejam financeiros ou humanos. Neste processo, a ANMP ocupa uma posição cuja centralidade é indiscutível. E, por isso, a decisão do município do Porto representa um efetivo dano ao municipalismo, às suas conquistas e até à harmonia e ao equilíbrio dos poderes democráticos em Portugal. A saída do município do Porto representa, pela sua dimensão e importância, um duro golpe na confiança na ANMP e, consequentemente, no seu poder reivindicativo perante o poder central, ficando todos a perder. E é por isso que se espera que outros municípios não sigam este perigoso caminho e que o próprio município do Porto reverta rapidamente esta sua errada decisão.
De acordo com o que se lê nos meios de comunicação social e com as declarações de Rui Moreira, o abandono da ANMP pelo município do Porto está relacionado com a falta de meios financeiros adequados à transferência de competências prevista pela Lei-Quadro n.º 50/2018.
Ora a ANMP aprovou por unanimidade um parecer desfavorável, nesta matéria, ao Orçamento de Estado para 2022, demonstrando total independência em relação ao Governo, em conformidade com a orientação de liberdade que sempre foi adotada nas decisões desta entidade. Assim sendo, as competências transferidas deverão ser acompanhadas por uma justa e eficaz cobertura financeira, competindo a todos os intervenientes lutar para que assim seja, reafirmando a solidariedade e o empenho político de todos para o efeito. Ação que só no quadro de uma ANMP unida poderá ser efetivamente ganhadora e eficaz.
O Governo do Partido Socialista reforçou a dotação do Fundo de Financiamento da Descentralização em cerca de 1.000 milhões de euros para a educação, saúde, ação social e cultura, conforme consta no OE para 2022, atendendo a uma reivindicação da ANMP. Deste total, refira-se 729,5 milhões de euros para a educação, 70 milhões na saúde, 42 milhões na ação social e 890 mil euros na cultura. Mostrou, pois, de forma inequívoca, o desejo de aprofundar a descentralização e de desenvolver uma efetiva política de proximidade.
Mas não se tendo revelado suficientes os recursos financeiros alocados a este fim, foram ainda aprovadas no OE outras propostas que visam mitigar estas deficiências. Assim, em sede de discussão do Orçamento, foi aumentado em 10 milhões de euros o fundo financeiro da descentralização no setor da educação; a simplificação dos contratos de empréstimos celebrados pelos municípios no âmbito do financiamento do PRR; a continuação da suspensão do princípio do equilíbrio financeiro; o aumento da margem de endividamento em 40% exclusivamente para assegurar financiamento nacional no âmbito de projetos cofinanciados; e o respetivo apuramento dos valores do Fundo Social Municipal.
Apesar do esforço do Governo, os meios financeiros ainda não se revelam suficientes. Pois bem, precisamente por isso, deve ser no âmbito da ANMP, num processo negocial, que devem ser encontradas outras soluções que garantam a eficaz e cabal concretização da reforma. E é evidente de que só em negociação dentro das estruturas representativas do poder autárquico, de que a ANMP é a máxima representante no plano nacional, poderão ser garantidas as condições para levar por diante esta grande reforma, a descentralização, que sempre foi reivindicada e que encontra eco nos próprios desígnios constitucionais.

* Deputado do PS na Assembleia da República eleito pelo círculo da Guarda

Sobre o autor

António Monteirinho

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