Era domingo de Páscoa e penso que para o festejar se lembraram de me levar a ver o “Música no Coração”. Para mim acabou por não ser grande festa, porque no grupo havia outra da mesma idade que eu e aquilo transformou-se numa competição de leitura de legendas com as tias a exibir as nossas competências linguísticas. Tenaz na luta pela medalha, a tia teve a ajudá-la o facto de eu ainda não ter entrado na escola, apesar dos seis anos, mas ter maior velocidade de leitura que a sobrinha da outra. Por estar pela primeira vez num cinema, que também servia para teatro, nem sequer estranhei o burburinho na plateia. Entre os Dó Ré Mi da que dançava de avental no meio dos campos por entre a garotada lá de casa e os elogios por estar a seguir as legendas, lembro de ter tido direito a uns Sugos que descasquei para o chão, por achar que ninguém via.
Da última vez que entrei no Cine Teatro da Guarda irritei o Paulo de Carvalho com a minha cara de extremo enfado plasmada no centro da primeira fila. Cerca dos vinte anos, a última coisa que me apetecia era ir ouvir aqueles refrões ao som das palmas na plateia, só que há sempre aquelas amigas a quem não se recusam convites e fui contribuir com os meus noventa minutos de vida para a felicidade duma. Depois dessa noite, que eu saiba, o “cinema” não voltou a ter espetáculos, nem filmes, nem teatros, com o pano, caiu também a “casa”. As grandes festas e eventos, se os teve, terão acontecido antes de eu ter nascido e, justa ou injustamente, até hoje considerei-a mais como a identificação de um largo do que como casa de qualquer coisa. Embora, pensando bem, me lembre de, enquanto ícone da decadência de uma época, o bom do “cinema” andar anos e anos a servir de arma política sem intenção de matar o que quer que fosse: compra-se, não se compra; faz-se, não se faz.
Entretanto, a patine do tempo vai-o valorizando enquanto memória da cidade que nunca lhe ligou nenhuma, nem, à exceção de uns quantos românticos, teve ideia de ligar. Felizmente ele há gostos para tudo e há quem veja, nestas coisas da decadência, uma manta de conforto estético que aconchega em horas desertas. Pelo menos, de pé, invisível, no meio daquele estaleiro a dar por mim à espera da luz da “pilha” que identifique a fila do bilhete, foi o que vi.
Procuro o lugar vago que me aguarda, sento-me e, mesmo sem o drim drim drim (que nunca consigo reproduzir), vejo as pesadas cortinas vermelhas desviar-se inexoravelmente para a tela das memórias. Desta feita, memórias do futuro, onde me vejo cada vez mais pequena sempre a asneirar à socapa e intolerante com filmes e concertos sensaborões, envolvem-me num arrepio de catedral.
Passados que estavam os noventa minutos regulamentares, saio a questionar-me se a Cultura não será mas é uma coisa do outro mundo a lembrar-nos da finitude do que não queremos deixar morrer. Depois, penso nos artistas e volto atrás para lhes apreciar a obra e, porque não, o esforço de quem lhes abriu a porta. E até gostei.