Museus e princesas

Escrito por Joaquim Igreja

1.Uma entrevista do diretor do Museu Nacional de Arte Antiga ao EXPRESSO de 5 de outubro põe o dedo na ferida. O turismo português, tanto o virado para os estrangeiros como o de carácter caseiro, alimenta-se de areias tórridas, águas mornas e bebidas frias na esplanada. Os prazeres da mesa são a sugestão nº 2 e nada mais para além disso. Nada que leve o veraneante ou simples passeante de inverno a frequentar um museu, a visitar uma exposição, a experimentar uma proposta teatral ou musical que o questione ou lhe desenvolva os horizontes. Umas ruínas ou uma catedral são um cansaço. E a comunicação social aproveita os verões tardios ou as ilhas de tempo bom para convidar à praia, num monopólio de sugestões que até impressiona. No verão uma série de dois ou três dias frescos é mesmo apontada nos inquéritos de telejornal como verdadeira catástrofe nacional quando podia ser oportunidade para conhecer uma região para cá dos 100 metros de praia. À noite é a mesma coisa: a maior parte das pessoas não fica a conhecer nada fora do trajeto praia-casa-café e da fancaria do espetáculo fácil de rua. Tudo o que cheire a património local e etnográfico é considerado de fraco gosto ou mania esquisita e pode deixar recordações de tempo perdido, que outros se encarregarão de ridicularizar. A meia analfabetização dos pais convive, no entanto, com formações superiores dos filhos que, bem aculturadas, poderiam acolher experiências marcantes, desafiando o que sai do normal. Mas não.
2. Quando, em relações de amor ou amizade, o “bom” se transforma em “mau” por força da vizinhança, primeiro vem a resistência, depois a desistência e numa fase mais avançada os tiques do parceiro mais implacável passaram já para o outro, custando a descobrir naquela pessoa o camarada ou o amigo que há 20 anos daria a pele por nós ou o/a parceiro/a que antes nos apreciava. O bom passou assim a adotar comportamentos ou tiques que sempre rejeitou no outro. Isto é, há relações/ pessoas que, isolando tudo com grades à volta, queimam, destroem, liquidando amizades, hábitos sociais sadios, valores e, no final, por desgaste, alterando mesmo os mais próximos por dentro. Para o exterior os “maus” passam muitas vezes a imagem de “antes quebrar que torcer” e de “heróis da vida”, mas entretanto à sua volta já quebraram e torceram os outros por individualismo, por egoísmo, por cínica ingenuidade ou “personalidade forte”. A questão põe-se também pelo lado contrário. Se o lado vicioso conseguiu vencer e transformar, nem que seja pelas reações, o lado bom, não é também provável que o mau se tenha tornado menos mau e que do confronto renasça no lado mau uma síntese menos lamentável? Não, no confronto de uma convivência a teimosia e a resistência do mal é mais forte, em nome do instinto de sobrevivência, da “lei da vida”, montra que tudo admite, aparecendo os seus (d)efeitos como positivos. Outra história é saber se há mesmo bons ou maus e identificar de que lado estamos nós.
3. Se alguém que não conhecemos vem ter connosco dizendo que nos conhece daqui ou dali evocando algumas experiências ou casos, lamentamos a figura que fazemos ao insistir que não conhecemos, entre a sensação de uma decadência iminente ou a evidência de que não estamos desenhados para lidar com memórias de mais de cinco anos. Passada a primeira estranheza, e identificado com dificuldade o fulano e a situação, aparece o relato de eventos comuns em que liminarmente não nos identificamos nem nas linhas mais gerais. Fulano acaba de nos dizer que naquela situação relatada de há 20 anos antes tivéramos afinal uma atitude assim, desagradável, coisa e tal, o que na altura surpreendera completamente quem estava connosco. Não me lembro de nada, olho para Fulano, incrédulo, entrevejo que a seguir me peça o pagamento de uma dívida qualquer mas afinal não. A pressa de Fulano a olhar para o relógio salva a situação e despedimo-nos até uma altura em que tenhamos mais tempo. Não faltarão ocasiões. Ufa!
4. Detesto ouvir as mães e os pais (e os avós) chamar “princesas” às filhas (ou netas). Não tem a ver com “antigo regime” nem com qualquer sentido de regresso ao passado que possa recear. Tem antes a ver com um sentido superlativo de omnipotência que vejo reconhecer aos filhos, como se eles detivessem um estatuto superior ao nosso e a intocabilidade de alguém que não se pode contestar nem repreender. Este endeusamento dos filhos (sobretudo pelas mães) é o sinal de que desejamos que sejam maiores do que nós e que queremos convencer-nos e aos outros de que um dia não nos deixarão ficar mal. Dito por outras palavras, o que procuramos é o reconhecimento pelos outros das excelsas qualidades dos rebentos e, por continuidade, de nós próprios mas para melhor ainda. Não vivemos sozinhos, realizamo-nos pelos mais próximos, os “nossos”, extensão de nós: que estranho é isto? Vá, andem lá, escolham aí a melhor fotografia, publiquem e peçam aplausos! Mas não as tratem de “princesas”! Arrepio-me!

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Joaquim Igreja

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