Elvisinha nasceu velha e assim ficou para o resto da sua vida. A menos que sobrasse muito do jantar de algumas das casas, da vizinhança e mais além, a Elvisinha só tinha direito a lanchar. Um direito adquirido à custa de rezar mas, ainda assim, um direito. Além de comer pouco, a Elvisinha também não repousava lá grande coisa. Dominada pela obsessão de todos os dias ser a primeira a beijar o anel do bispo, dormia como as galinhas. Por já não confiar nos ouvidos, para a alertarem para o ranger do portão de ferro da casa do bispo, mantinha sempre um olho apontado à fisga da porta que ia abrindo até o ver. Assim que o homem aparecia, já em vénia para mais depressa chegar aos lábios o frio do ouro bispal, iniciava a travessia da rua com o ímpeto de quem se atira ao maior dos prazeres e dava por terminada a manhã.
Durante o resto do dia, quando não andava de uma casa para a outra, a transportar uma santa, dentro de uma espécie de armário, numa das mãos e o terço, com que enxotava os garotos que lhe aparecessem à frente, na outra, rezava. Rezava, mas não sem frequentes interrupções e encanzinamentos. Bonito ou feio, limpo ou sujo, bem ou mal-educado, rico ou pobre, qualquer garoto tinha o condão de a encolerizar e garotos, ali pela porta da Elvisinha, não faltavam. Assim que os via, fixava-os com o seu olhar agastado e, sempre de terço na mão, investia contra eles com a mesma firmeza com que investiria contra um diabo qualquer. Claro que raramente ficou sem resposta. Umas vezes, os catraios entretinham-se a tentar acertar-lhe com pedrinhas no nariz, através do vidro do janelo da porta. Outras vezes, a garotada desfrutava primeiro de uma espécie de jogo em que quem conseguisse inventar-lhe o nome mais insultuoso ganhava o direito de lhe atirar maior número de pedras. Sempre por detrás do vidro, porque a completa negritude do vestir na velha era suficiente empecilho a maiores intimidades. Ora, num tempo em que qualquer adulto estava, só porque sim, legitimado a “endireitar” qualquer petiz, ser apanhado a atirar pedras ao janelo da porta da Elvisinha significava sempre ter de levar com repreensões ainda maiores do que se faltasse à escola sem dizer nada aos pais. Para isso, de faltar às aulas, havia sempre uma atenuante, para isto, de apoquentar a velhinha, não. Quando se queixavam de que ela lhes batia, acabavam, inevitavelmente, a ser batidos para aprenderem a não mentir. Quando conseguiam provar que não tinham mentido, acabavam a ser repreendidos pelo que teriam feito para que ela assim agisse.
Desse por onde desse, alguém que fazia vigília para ser a primeira a beijar o anel do bispo, jejuava sem fim e andava de casa em casa com uma santa dentro de uma caixa, não podia ser culpada de nada. À luz dos costumes e daquele catolicismo nacional, a Elvisinha acabava sempre a surgir como inimputável. Depois de o cidadão Marcelo, interromper o papel de presidente para defender os chefes dos padres nacionais, ficamos a saber que, à luz dos costumes e deste velho catolicismo nacional, o mais certo era que assim continuasse a ser.
A beata Elvisinha e o presidente imperfeito
“À luz dos costumes e daquele catolicismo nacional, a Elvisinha acabava sempre a surgir como inimputável.”