A árvore de Natal nunca morre

Escrito por Fidélia Pissarra

Só muito dificilmente alguém imaginaria que daquelas velhas caixas, arrancadas a custo às profundezas da despensa, haveria de sair a árvore mais bonita dos últimos 20 natais. Há muito que a idade lhe levara os frágeis pés de plástico e, antes de a deixar sair dos bocados de cartão seguros a fita adesiva em que se transformara a velha embalagem de fábrica, havia que ir buscar o vaso cheio de terra que costumava substituí-los. Depois sim, inicia-se o ritual da montagem, com os ramos a estirarem-se triangularmente entre os dedos ao ritmo das recordações de mais de meio século de natais. Dos natais, antes das vias rápidas da CEE, lembra do cheiro a musgo, com que atapetava o presépio, feito com figuras de barro compradas na praça, misturado com o do pinheiro verdadeiro enfeitado com bolas, fitas reluzentes e pinhas de chocolate compradas nas papelarias e mercearias da vizinhança calcorreada, interruptamente, durantes os quinze dias anteriores. Dos natais, depois das autoestradas da UE, lembra as instruções de montagem do pinheiro e do presépio de plástico fabricados no outro lado do mundo e comprados num centro comercial do Norte. Todos os anos pensa em comprar uma árvore de natal, mas arranja sempre uma desculpa para não o fazer. Um ano, porque para o ano já compra. Outro, porque há que se ter consciência ecológica. Outro, porque não dá jeito e, de razão em razão, o velho e desconjuntado pinheiro de arame e plástico tem-se aguentado melhor, nas viagens entre o fundo da despensa e o centro da sala, do que qualquer outra tradição ou adereço natalício.

É que, sem se dar conta, as deambulações pelas mercearias e papelarias, a ver de bolas, fitas e sinos de chocolate para o Natal, acabaram. Os pinheiros de verdade, o musgo e as barracas da praça que vendiam as imagens de barro para o presépio também. Sem aviso, mas previsivelmente, os pais, depois dos avós, morreram. Os grandes jantares de família também. Só o bacalhau com couves e o arroz de polvo, de que ninguém gosta, persistem da família que agora se mostra ainda mais desconjuntada que o velho pinheiro a que acrescenta mais uns sinos, umas estrelas e bolas douradas. Nesse instante, lembra-se de se lembrar de que ainda lhe falta comprar os pinhões e as broas castelares. Passa pela revisão da lista das prendas, enquanto mete os enfeites que não usou nas caixas e as arruma, provisoriamente, no cimo da despensa e, a seguir, esconde atrás do móvel o fio da tripla a que, a acreditar nos rótulos das embalagens, ligou as mais de quinhentas luzinhas. Mais tarde, há de chegar o marido que antes de lhe dizer que esta é a árvore de Natal mais bonita de sempre lhe perguntará se comprou uma árvore nova e, pelo menos até ao Dia de Reis, não voltarão a pensar mais no assunto. Por essa altura, à semelhança do que vem sucedendo nos últimos anos, ver-se-á aflita para guardar os ramos velhos, na caixa ainda mais velha, e resmungará durante toda a tarde que a tarefa lhe demorará: “Para o ano, compro uma árvore de Natal nova e deito esta para o lixo”.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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