Uma cidade de contexto rural, ou uma cidade rural, não é – não tem de ser – uma contradição nos termos. É apenas a forma de organização de uma comunidade que passou a viver urbanamente, mas cujas raízes económicas e culturais continuam a ser do campo. A malha urbana, onde a maioria das pessoas habita, não dista dos terrenos de trabalho, o que permite a permeabilidade constante entre as duas realidades. Cidade e campo não são uma dicotomia.
A força das “rural cities” (em inglês, passo a ironia, talvez o conceito ganhasse outra aceitação… smart cities, sustainable cities, etc…) depende muito da pujança do chamado setor primário, ou das atividades secundárias dele decorrentes. Quanto mais importante for a agricultura, a pecuária, a floresta, as renováveis ou a indústria transformadora dos produtos primários, mais importantes podem ser este tipo de cidades. Se estas atividades forem desprezadas, as cidades definham. Foi o que aconteceu em Portugal nas últimas décadas.
No futuro, se quisermos vir a ter “rural cities” robustas, sabemos que o Estado – quer a nível central, quer a nível local – tem de assumir o setor primário como prioritário. Tem de desburocratizar a relação com este setor, criar uma política fiscal atrativa, promover a investigação científica nesta área e qualificar convenientemente a população para a produtividade e a sustentabilidade. Os institutos politécnicos e as escolas profissionais assumem, neste contexto, um papel de relevância ímpar. Os municípios e as comunidades por estes compostas também têm uma palavra a dizer.
Também é preciso que o Estado – quer a nível central, quer a nível local – garanta aos “rural-citizens” serviços de qualidade elevada. Sem qualidade de vida e acesso a bens da civilização as pessoas não podem viver e criar valor nas cidades de contexto rural. A este respeito, a política não pode ser a do menos Estado. O mercado, por si só, não quer saber deste tipo de comunidades. O mercado quer o máximo de consumidores no mínimo de espaço possível. Compradores empilhados. Megacidades clássicas. Quanto maiores, melhor.
Acontece que, no atual contexto geopolítico, a Europa precisa de repensar a sua ruralidade. Num período em que – à pressa – se discute a política de defesa do Velho Continente, as atividades produtivas de contexto rural passam a estar na primeira linha de relevância. Não haverá segurança e soberania europeias sem produção primária que sustente quem vive no espaço comunitário. A comida é uma arma (como infelizmente temos visto em Gaza e noutras partes do mundo). Rearmar a Europa também é zelar pela soberania alimentar dos seus povos.
Em termos nacionais, quem sabe se este contexto, apesar de não desejável, pode ser transformado numa oportunidade para reinventarmos a nossa visão relativamente à frente continental do nosso país. Historicamente, o papel de muitas comunidades instaladas nesta faixa foi o da defesa (a relembrar-nos disso está o topónimo Guarda). “Mutatis mutandis” poderá voltar a ser esse o seu principal papel, num contexto europeu em grande transformação. Ter uma rede forte de “rural cities” pode ser um desígnio – português e europeu – para as próximas décadas.