9ª Sinfonia de Beethoven – mais que hino, missão para a Europa

Escrito por José Valbom

“A obra decorre e no seu “Terceiro Andamento” existem variações sobre dois temas alternados. Assim podiam ser os debates hoje, sobre pontos de vista diferentes. Debate e confronto de ideias em vez de agressividade e ódio.”

Celebramos este maio os duzentos anos da primeira audição da Nona Sinfonia de Beethoven (7-05-1824). Audição para todos, exceto para Beethoven (1770-1827), completamente surdo.
Surdez que, ao invés de obstáculo, deu um toque especial de doçura e força, criatividade e inovação a esta obra e a todas as outras da fase final da sua vida. A necessidade aguça o engenho, diria Camões.
Obra com cerca de oitenta minutos obrigou Ohga (1930-2011), presidente da Sony, a alterar o formato do “compact disc” para que «fosse capaz de tocar a nona inteira».
As agruras da vida – maus tratos na infância, dores crónicas por múltiplas patologias e suas sequelas, acompanhadas, a partir do meio da vida, de surdez progressiva e carência económica grave – enraizaram a ideia de construir uma “Ode à Alegria”.
Adepto das ideias da liberdade, desprezava os “imperadores”, tendo afirmado a propósito de Napoleão – «Não passa de um homem banal». Fez mais: exigiu que a sua terceira sinfonia, intitulada pelo patrono/ financiador “Sinfonia Bonaparte”, se intitulasse “Sinfonia Eroica”, nome que mantém. Recusar o culto da personalidade, é uma boa ideia para os “Putinistas” de hoje.
No mesmo sentido vem o seu espírito de autonomia, recusando a subserviência, exclusiva a patronos, autonomizando o papel do criador artístico.
Das entranhas da tristeza surge o “Hino à Alegria”.
Aliado ao poeta, filósofo, historiador e médico alemão Friedrich Schiller (1759-1805), constroem o hino à Fraternidade Universal. Pela primeira vez, uma sinfonia coloca vozes de solistas e um coro no seu último andamento com o mesmo destaque que os instrumentos. O poema expressa uma visão idealista da raça humana como irmandade – visão partilhada por Beethoven.
Schiller queria usar a palavra liberdade, mas escolheu alegria para enganar a censura imperial. Os censores gostam de todos os tempos, mesmo do nosso! A palavra está bem escolhida: não há liberdade sem alegria, nem alegria sem liberdade.
Temos obra – música e poema, vozes e instrumentos.
A introdução da parte vocal foi particularmente difícil e trabalhosa. O génio é dez por cento de inspiração e noventa por cento de suor, fica provado.
O início da peça inspira-se no “Misericordias Domini” do seu ídolo – Amadeus Mozart (1756- 1791). Que bem que nos ficava (hoje) reconhecer o mérito dos outros.
A partitura consolida muito do trabalho feito e as experiências instrumentais do seu “Quinto Concerto” para piano, conhecido como “Imperador”.
Hoje não precisamos da experiência dos anteriores, (vg a lista de deputados pode ser (quase) completamente nova). A experiência está fora de moda!
A obra decorre e no seu “Terceiro Andamento” existem variações sobre dois temas alternados. Assim podiam ser os debates hoje, sobre pontos de vista diferentes. Debate e confronto de ideias em vez de agressividade e ódio.
Perto do fim surge a inovação tecnológica – a incorporação da nova “trompa com válvulas”.
A parte final – a mais conhecida e reconhecida é o Hino do Conselho da Europa desde 1972 e da União Europeia desde 1985. Música e vozes ampliam e perpetuam a mensagem:

“…
Alegria , bela centelha divina
….
Tua magia reúne novamente
o que o costume rigorosamente dividiu ;
todos os homens serão irmãos,
….
aquele que conseguiu o grande lance
de ser amigo de um amigo
….
Correi, irmãos, por vosso caminho,
alegres, como um herói para a vitória

(Schiller)

Palavras dos outros:
1) «O confronto entre opiniões, ao abrigo da liberdade de expressão, chama-se discussão. A diferença entre opiniões chama-se controvérsia. A coexistência chama-se liberdade».
António Barreto, “Público”, 25-05-2024

2) «Corremos o risco de criar adolescentes polarizados e racistas e andamos distraídos com isso».
Eduardo Sá, psicólogo, “Público”, 25-05-2024

* Médico e líder da bancada do movimento independente “Pela Guarda” na Assembleia
Municipal da Guarda

Sobre o autor

José Valbom

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