14 espanhóis fuzilados na Guarda

Escrito por Francisco Manso

“Na vizinha Espanha, com quem os intervenientes tinham laços familiares muito fortes, o clima era idêntico: terror e guerra civil.”

Com a morte de D. João VI, em 1826, surgiu um grave problema na sua sucessão dinástica e que irá ter consequências funestas para os portugueses. Havia dois candidatos ao trono, D. Pedro e D. Miguel, irmãos, mas com visões diferentes do poder, que irão envolver o país numa guerra civil fratricida, simbolizando o liberalismo e o absolutismo. Na vizinha Espanha, com quem os intervenientes tinham laços familiares muito fortes, o clima era idêntico: terror e guerra civil.
A situação era complexa. D. Miguel acolhia em terras portuguesas D. Carlos de Bourbon, seu cunhado, que era candidato ao trono de Espanha, pois era irmão de D. Fernando VII, falecido em 1833 sem nenhum filho varão. Em princípios de 1834 julgou ter chegado o seu momento oportuno. Nesse sentido, em abril desse ano deslocou-se para Almeida e daí, acompanhado por cerca de 50 apoiantes, tencionava ir ao encontro do general Rodil, Capitão General de Extremadura, que julgava ser seu apoiante. Na verdade, Rodil tinha como missão a sua captura e impedir a todo o custo a entrada do Infante em Espanha. D. Carlos, assim que se apercebeu da realidade, procurou fugir a toda a pressa para a Guarda, onde tinha o apoio do bispo egitaniense D. Joaquim José Pacheco e Sousa e em cujo paço episcopal já se encontrava instalada a sua família, acompanhada de uma pequena corte.

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Figura 1. Paço episcopal, onde esteve alojado D. Carlos e pouco depois o General Rodil, seu perseguidor.

Rodil, que comandava uma força de 15.000 homens, vai no seu encalce até à Guarda, sem qualquer respeito pela soberania portuguesa, talvez até com a sua conivência. Aqui, apesar da urgência, D. Carlos pôde preparar a fuga da sua comitiva, agora engrandecida, entre outros, pelo bispo da Guarda, que nunca mais voltará à sua diocese. Levaram as bagagens que puderam e as restantes teriam sido escondidas no poço que havia, e há, no quintal do paço. Quando saíam pelo portão do dito quintal já se ouviam os clarins da guarda avançada de Rodil, a dar entrada pela Rua do Carvalho, em frente ao edifício onde pouco depois irá funcionar o Governo Civil. Era uma força imponente e numerosa a procurar instalar-se numa terra pequena e pacata, onde os meios logísticos eram poucos e modestos, mesmo pobres, depois da hecatombe provocada pelos franceses. As tropas invadiram tudo. Rodil e o seu estado-maior alojaram-se, também eles, no paço episcopal, ainda quente dos anteriores ocupantes. A artilharia instalou-se no Campo de S. Francisco e o resto das forças em tendas de campanha montadas na Dorna, ao redor da Sé, no Batoréu e no Campo de S. Francisco. Todas as casas particulares, sem escapar nenhuma, foram mobilizadas para aboletar a multidão de soldados. A Guarda estava, pode dizer-se, em estado de guerra.
A força avançada de couraceiros que primeiro tinha chegado à Guarda em marcha forçada partiu, assim que pode, em perseguição de D. Carlos, que tentava alcançar Santarém para reunir forças e apoios. A força regressou passados quatro dias, escoltando um grupo de 14 espanhóis que tinha aprisionado entre as aldeias de Ferro e Peraboa, e que se tinham perdido do resto da comitiva em fuga. Os presos, que vinham num estado miserável quando chegaram à Guarda, foram postos de oratório durante três dias numa casa do convento de S. Francisco. Curiosamente, poucos dias depois será encerrado definitivamente, talvez até já estivesse fechado, pois a penosa missão de os exortar competiu aos padres externos António da Paixão Borrego e Joaquim Lopes Raposo. Passados estes dias de oratório foram levados para junto da capela de S. Sebastião (tinha duas irmandades: S. Sebastião e Santo Amaro) e ali, frente à parede, perante uma Guarda estarrecida, foram fuzilados por uma força comandada por um tenente.

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Figura 2. Antigo Campo de S. Francisco. Aqui estacionou a artilharia de Rodil. Em primeiro plano, do lado direito, a fila de seis casas construídas onde antes se situava a capela de S. Sebastião, e onde foram fuzilados os 14 espanhóis.

Depois, com o general Rodil à frente, as forças da divisão desfilaram por duas vezes em frente aos desgraçados, primeiro em “passo grave” e depois em “marcha ordinária”, sempre acompanhadas das bandas regimentais, que tocavam o hino de Fernando VII. Tudo terminado, um lavrador da quinta do Chafariz, que ficava junto do chafariz de Santo André, apiedado, carregou os cadáveres num carro de bois e levou-os para o cemitério da Misericórdia e ali foram sepultados. Dois deles eram frades e um deles capelão efetivo de D. Carlos.

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Figura 3. Velho chafariz de Santo André. As águas sobrantes iam para a Quinta do Chafariz do lavrador que levou os corpos.

Quando em 1956 se procedeu à abertura, alargamento da Rua Vasco da Gama, junto à igreja da Misericórdia, apareceram muitos despojos funerários e entre eles botões espanhóis e moedas da época referida. Foram adquiridas pelo comandante dos Bombeiros Voluntários, António Valentim Dias, aos operários que ali trabalhavam.

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Figura 4. Antiga Praça de Táxis. Aqui se situava o cemitério onde foram enterrados os 14 fuzilados.

*Investigador da história local e regional

Sobre o autor

Francisco Manso

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