Especial Ano Novo Opinião

Narrativa de um anuário na vida de O INTERIOR

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Escrito por João Mendes Rosa

Por ironia onomástica, Gonçalo Gonçalves fazia do patronímico a insígnia mais vigorosa da sua identidade: perdera o pai mal chegado ao decénio e, dois anos depois, já apascentava o rebanho merino nas encostas de Vila Soeiro, Pêro Soares ou Misarela e, juntando à lide pastoril as faculdades de lenhador e ofícios vários levava sozinho o pão para o casinhoto onde sua mãe cuidava dos gémeos. Fizera-se homem por si próprio. Gonçalves – filho de Gonçalo; filho de si mesmo. A tragédia na fábrica fundeara-o mais na crueza da vida do que a própria orfandade, pois, tratos de afecto – seja lá o que isso for –, nunca o malogrado progenitor, nas escassas horas em que descansava os ossos nas quatro paredes que hiperbolicamente chamavam casa, tivera ocasião de lhe dar a conhecer. Outro tanto se passara por certo com a irmã mais velha, a Florinda, que viu pela última vez há anos já sem conto, antes de esta partir para África logo após terminar o noviciado numa congregação missionária.
Cumprida a escolaridade entranhara-se-lhe na alma um poemeto de Augusto Gil, que ele vociferava gostosamente frente às penedias, para que estas lhe devolvessem o eco estrídulo do granito: Sob este céu creador / De manhã vergiliana, / Apetece ser pastor / E tocar frauta de cana… Ficou-lhe assim, sem saber bem porquê, a voragem dos livros – vício que, tal como o tabaco, nunca abandonaria – e que o levava a mandar parar em plena serra a desengonçada citroën da Gulbenkian. Da candidez augustana Gonçalo passara, sem se dar quase conta, ao vórtice mais ousado, e o próprio assistente da Biblioteca Itinerante – diligente fautor do reviralho, já se vê – colaborava no destemor, não sem que tivesse recebido a devida admoestação sacerdotal e alvitres epistolares da Florinda, acautelando-o dos perigos advindos de manhãs submersas e barrancos de cegos, da perdição da alma e do fogo eterno. As sequelas de um mergulho aparatoso no Mondego – onde se dizia que belas vestais se banhavam nas antemanhãs nevoentas – livraram-no do infame uniforme e, atingida a maioridade – como se não a tivesse já conquistado desde gaiatinho, Deus louvado! – abalou para França. Salazar acabara de cair da proverbial cadeira naquele ditoso forte do Estoril. Entre o casqueiro de centeio e as três morcelas, o alforge acoitava também um exemplar de ‘O Homem Revoltado’ de Camus e ‘Os Sequestrados de Altona’ de Sartre, ambos em edição clandestina de livro-de-bolso, já que a Gulbenkian, substituindo-se ao Estado na promoção da leitura, se permitia ter obras proibidas pelo regime que só a alguns disponibilizava.
Terminada a leitura dos dois escritores desavindos, um pouco perdido entre as crateras existencialistas de Sartre e a enérgica rejeição de todas as concepções ideológicas, definhadoras na natureza humana, de Camus, reteve a citação de Walt Whitman, tão cara a este último e sentiu-se feliz: “sem liberdade, nada pode existir”. Fechou o voluminho e, concomitantemente, contemplou atónito, por entre a vidraça baça da carruagem de terceira classe, o formigueiro humano que freneticamente se saracoteava na Gare d’Austerlitz. Estava em Paris.
Respirando a pulmões plenos aquele ar diáfano que o Sena exala, não tarde deu por mal empregue os mil escudos com que remunerara o primo, ao descobrir que o emprego como serveur que aquele supostamente lhe arranjara no bistrot na esquina da Rue de Lafayette com a Rue Cardet não existia, nem sequer havia aí bistrot algum. E o quarto no nº 27 da Rue d’Anjou também correspondia a embuste. Aferrando os dentes no polegar, rumorejou um palavrão, respirou fundo três vezes e pensou de olhos cerrados: – Gonçalo Gonçalves, filho de si mesmo’… Durante três noites Gonçalo valeu-se das estações de metropolitano que ainda acolhiam os sobreviventes das turbulências de Maio passado, preferindo, todavia, a de Pont Neuf por ser a que ficava mais perto do Louvre, em cujo pátio passeava o estômago quase vazio, não fora a pomme de terre que esmolava nas frutarias sempre que podia. Foi nesse vaivém que conheceu o foz-coense Lourenço – muito estimado por ali enquanto diligente distribuidor de mercadoria hoteleira. Em menos de dois dias Gonçalo Gonçalves tinha cama e roupa lavada e envergava o avental com o monograma bordado do Café de Flore, no bairro de Saint-Germain-des-Prés. Durante quarenta e nove anos serviu às mesas daquele estabelecimento, frequentado por Bataille, Desnos, Sartre, Picasso e o então já falecido Albert Camus. Aí conheceu Júlio Pomar e Mário Soares, no início da década de 70. Pela vida fora testemunhou tertúlias e palestras, discussões acaloradas, as mais vibráteis proclamações, manifestos inflamados, postulados inverosímeis e aclamações inenarráveis. Aquele botequim fora a sua escola de cidadão crítico e consciente.
Aos 67 anos, Gonçalo Gonçalves, ‘filho de si mesmo’, mau grado mais corcovado e roliço, contando ao espelho raros fios negros por entre a cabeleira grisalha, decidiu que era tempo de regressar. A resolução, ainda que firme, não fora tomada sem que uma descarga de pavor não lhe percorresse a espinha. Nunca mais voltara aos horizontes natais. Nem sequer depois da revolução de 74. Trocara algumas cartas com os irmãos – entretanto todos emigrados também – e recusou ver a féretro materno descer à terra. Leitor compulsivo de onde quer que houvesse letra impressa, saudou efusivamente a fundação do hebdomadário guardense O Interior no ano 2000. Fez-se assinante. E enviava mesmo, de quando em quando, umas linhas à redação, publicadas depois sob o semi-anonimato de umas iniciais quaisquer, na rúbrica ‘Espaço Público – Do Leitor’. Nunca casara. Nem tão-só um relacionamento aberto como Sartre e Simone de Beauvoir. Namoriscou em tempos remotos uma florista de Montparnasse e depois uma revisora de provas do Le Parisien – diário da sua predilecção pela sua estreita relação com a Resistência – mas aquela frase Walt Whitman que habitava permanentemente a sua solidão, fazia-o optar pela liberdade. E citava em tom jocoso Óscar Wilde, também ele em tempos desterrado em Paris – “Um homem pode viver feliz com qualquer mulher desde que não a ame”. Filhos também nunca desejou: até porque temia ter herdado a propensão progénita da desafeição e, além do mais, já tinha visto muito, ingratidões e desafrontas filiais…
A 5 de Janeiro de 2017, uma quinta-feira, chegava ao aeroporto da Portela, depois de legar à Maison de la Poésie, no Théâtre Molière, o seu acervo livresco e periodístico – onde pontificavam as colecções encadernadas a couro sintético de O Interior e o Le Parisien – pela relação simbólica que um e outro estabeleciam com a sua própria vida. Antes de se fazer à estação de Santa Apolónia, Gonçalo deixou na Gulbenkian, sem grandes explicações e para espanto do bibliotecário de serviço, os livros de Sartre e Camus que levara consigo há quase meio século.
Chegado à cidade altaneira, instalara-se na primeira hospedaria que lhe apareceu na consulta célere ao smartphone. Espreitou depois, de olhos toldados o Hotel Turismo, a funcionar em pleno quando partiu, e bem assim o Cine-Teatro; entreviu a seguir as ossadas ultrajantes do Café Mondego, onde bebericara a primeira ginjinha na companhia de um tio, também ele amarrado desde imberbe aos liames inevitáveis da diáspora. Adquiriu sem pressas O Interior, saído nesse mesmo dia – o primeiro número do ano. Caixa alta da primeira página: “Região perdeu 15 mil habitantes em quatro anos”. Enquanto o café, que há quase meio século não apaladava – tomado num desses snacks incaracterísticos – lhe ia devolvendo memórias a esmo, foi recordando o frenesim da cidade de outrora. Quinze mil habitantes! Em quatro anos… E ele fora, como muitos, dos que iniciou a debandada. A culpa, evidentemente não podia ser imputada a quem partiu. Fora de quem não possibilitou a permanência. Só a Guarda perdera 2.300 habitantes – lê-se noutro texto. O despovoamento é uma realidade calamitosa que os vários governos não quiseram contraverter: prova disso é, por exemplo, o agravamento do valor das portagens da A25, como noticia esta edição do jornal. – O mito político da interioridade – dizia de si para si – e saber que Paris fica no interior de um território vastíssimo…
Cidadão do mundo, o nosso protagonista está bem ciente de que a imprensa – e a regional particularmente – quando livre e descomprometida é agente fundamental de desenvolvimento das zonas mais afectadas pela perda de população. É a vox clamantis in deserto! Corrobora-o o editorial assinado pelo director do semanário em apreço, Luís Baptista-Martins: “é urgente reivindicar um plano Marshall que permita investir estrategicamente nestes territórios abandonados”… Esse estado de abandono, o desconsolo atroz do despovoamento, pôde Gonçalo testemunhá-lo pelos seus próprios olhos nos dias seguintes ao contemplar, desalentado, o tecido habitacional de aldeias do concelho da Guarda. O noticiário radiofónico da viatura entretanto adquirida, anuncia o internamento hospitalar do antigo Presidente da República, Mário Soares. A 7 de Janeiro, falece o político a um tempo desamado e enaltecido, controverso e vitoriado. A edição de dia 12 de O Interior, destaca na primeira página o fatídico acontecimento. Gonçalo, que conhecera Soares no seu exílio parisiense, como se disse, tem do estadista uma ideia aparentemente denegatória: reverenciava o oposicionista destemido – que sabia ter o nome de código ‘Duarte’ – atirado para os calabouços mais rigorosos da ditadura, do Aljube a Caxias, desterrado sem julgamento para S. Tomé; mas abominava o animal-político em que aquele se convertera – estatuto já ao de leve anunciado aquando do pronunciamento, pela primeira vez, da expressão-manifesto ‘mon ami Miterrand’. No fundo, talvez consigne a imagem que a maioria dos portugueses retinha dessa figura indubitavelmente carismática e que abriu cizânia no partido que fundara ao recandidatar-se desastrosamente a um terceiro mandato presidencial…
Foi a abordagem de temáticas como a mencionada que levou Gonçalo, desde a latitude legendária da Cidade-Luz, a interessar-se por um semanário arejado e radioso surgido dentre a nebulosa geografia avoenga onde nascera: O Interior não se fundeava na mera vocação localista ou regional – abalançara-se afoitamente numa compleição muito mais vasta e projectava a voz da região para um contexto que a transpunha a si mesma. Além do mais, a colaboração de articulistas de reconhecimento nacional reforçava a identidade do jornal, ao qual não era alheio o facto de constituir um dos encartes do semanário Expresso. Eram esses, por certo, os fundamentos da sua sustentação ao longo destes quase vinte anos de existência, que se cumprirão em 2020.
Os dias de regresso tornam-se para Gonçalo numa espécie de reconciliação. Mas com quê? Na verdade, nem ele o sabia bem. Talvez fosse até consigo próprio. Assim, repartia o seu vagar entre incursões à serra e deambulações arrastadas pela cidade. Começou a ser rotineiro vê-lo, meditabundo, tomando notas num canhenho preto de argolas. A respiração da cidade ganhara novo fôlego com a ginjinha bebida de um trago na Taberna do Benfica, na Rua Rui de Pina, à Porta do Sol – um dos espaços conviviais mais castiços da urbe resistindo estoicamente ao tempo e à voragem consumista do mercado; as próprias autoridades sanitárias reconheciam a salubridade mental que ali pairava. Fevereiro entrara frio e chuviscado, na certa por culpa de Bóreas soprador do vento norte, gélido e vigoroso, como só essa divindade sabe. A neve, essa, reside cada vez mais no passado fotográfico e na balada giliana. Na mesa do canto da mítica betesga, aberto na página 5 da edição de 9 de Fevereiro, um texto composto a três colunas d’ O Interior dava conta da recandidatura de Álvaro Amaro à edilidade guardense. Gonçalo trocou olhares furtivos com o Senhor Toneca – seu amigo de sempre – do lado de dentro do balcão, instou por outra ginjinha e, sem medir as consequências, comentou, altissonante: – Bem, pelo menos Amaro é um homem de acção! Não faltou quem reagisse, em contraditório trocista: – Ó Toneca! Sai uma rotunda, faxavor…. Era o que Gonçalo queria ouvir. Este, emborcou a ginjinha de um sôfrego trago, limpou os lábios com as costas da mão nodosa e dirigiu-se ao interlocutor sem disfarçar o sotaque de francófono e a abordagem trans-vocabular:
– Repare, amigo, eu não tenho quaisquer afinidades partidárias com o anunciado candidato, vous comprenez? Nem tão-pouco relações pessoais, mas em certo tipo de debate ideológico, é muito fácil recorrer a clichés que toldam os juízos críticos. Álvaro Amaro conseguiu reverter o passivo financeiro e parece decidido a dar à Guarda uma compleição compatível com a sua notoriedade; ao nível cultural – que é do que estamos mais precisados, porque daí decorre tudo – confio que seja capaz de ombrear com outras cidades de igual dimensão.
Se o narrador pretendesse falar abertamente – e quebrar com essa atitude indigna de um contista a sua distância do enredo – prolongaria este conto uma boa vintena páginas, incumprindo além do mais as recomendações expressas do Luís Baptista-Martins:
– Cinco ou seis paginazinhas de texto; que não passe disso, entendido?
Bom, o que importa é que Gonçalo é ideologicamente insuspeito, como sabemos. ‘Canhoto’ o suficiente para amar Bataille, mas não tão jacobino que o impedisse de igualar na veneração um Charles Péguy. E a partir daquele momento ‘a Taberna’ – em sinédoque estabelecida espontaneamente – converter-se-ia em senáculo de ágapes e tertúlias. O mote era dado quase sempre pelo semanário que Gonçalo apertava debaixo do braço ou metido dentro da algibeira da gabardina dobrado ao meio, verticalmente. A edição de 2 de Março, tratava um tema que era caro a todos, mormente a Gonçalo: a emigração atingia índices equivalentes aos dos anos 60 e 70. Estamos a assistir ao golpe derradeiro no Interior – diziam a um tempo – urrando ultrajes ao Terreiro do Paço; e Gonçalo que pensava ter já visto tudo… No fragor da altercação que o tema gera sempre, o nosso protagonista foi saindo de mansinho: estava habituado à elevação dos debates do Café de Flore. Antes de se dirigir ao seu habitáculo daquela humilde pensão do centro da cidade, tempo para entrar no Museu da Guarda: por todo o espaço museal uma mostra do pintor Florêncio Maillo, num diálogo expositivo das suas criações contemporâneas com o acervo histórico do Museu. A Florêncio – que os amigos tratam apenas por Floren – também lhe é cara a temática da diáspora: a partir de um importante acervo fotográfico (um fotógrafo local fotografou em 1967 todos os habitantes da povoação de Mogarraz para que estes pudessem obter a documentação legal que permitisse emigrar para França, Alemanha ou Argentina) reproduziu em obra plástica contemporânea cada um desses retratos.
Maio é um mês que cala fundo na alma de Gonçalo. Parece que o ilustre ar da Guarda, recobra uma inefável translucidez e anicha-se nos pulmões com renovada convicção. N’O Interior – uma boa notícia e há muito aguardada. Ou aparentemente, é-o. O Hotel Turismo, ao abrigo de um programa governamental, irá ser reabilitado. O tempo o dirá… Gonçalo fia os dias primaveris numa roca de isolamento e meditação, alentando-se nas suas leituras furtivas nas escadarias da Porta d’El-Rei, nos bancos do Jardim José de Lemos ou sob a meia-luz da catedral, simulando rezar – ou até talvez rezasse, os missais é que eram outros…
O Estio vai arejado ou não fosse a altimetria uma das moradas preferidas de Zéfiro, essa benigna divindade clássica que sufla o vento oeste, suave e agradável, contrastante com as invernias glaciais que afamam e afirmam a cidade. Mas os dias estivais podem significar o advento de dois grandes coadjuvantes do aceleramento da desertificação. O primeiro deles é a inexistência de um sistema de regadio concertado com as exigências de uma agropecuária competitiva e impulsionadora. O Interior, na sua edição de 13 de Julho exibe, em dignas parangonas, acompanhadas de foto absolutamente elucidativa: “Seca ameaça a região”. Gonçalo corrige nariz acima as armações metálicas dos óculos desengonçados e lê, sentado numa das esplanadas solarengas da Praça Velha: “Beira Interior e Alentejo podem chegar a Agosto sem água”. A Primavera deste ano de 2017 terá sido a terceira mais quente desde 1931 – lê-se no desenvolvimento da notícia. Pior do que esta catástrofe só mesmo o flagelo dos incêndios – pensa, de si para si, Gonçalo Gonçalves – mas não tardarão aí… E a premonição cumpriu-se: uma semana depois, ardiam mais de oito mil hectares só no concelho da Guarda. “Paisagem de luto” – é o título do semanário que vimos citando, edição da última Quinta-feira do mês referido. No miolo, uma “viagem à terra queimada” dá conta da dimensão da tragédia. Ao ler o texto, a hipnose da imagem captada despertara no velho serveur do Café de Flore, pela primeira vez, um melancólico desejo de regressar a Paris…
Entretanto a campanha eleitoral grassa pelo concelho; ruidosa, por vezes verborreica, adivinhando-se cada vez mais o vencedor. Gonçalo irmanava o seu pensamento com o de Agostinho da Silva, que não queria “saber das campanhas eleitorais para nada’. ‘Eu quero saber das ideias que as pessoas têm e da maneira como depois as vão defender e praticar” – disse numa antiga entrevista. Na verdade, muito se tem dito de ilusório e falacioso e a política é talvez a única práxis não se pode compaginar com a irrealidade.
Paulatinamente, nas semanas seguintes, as ruas da Mais Alta, começam a atufar-se de gente, como que eclodidas de nenhures. Agosto fornece o espelho ilusório de uma cidade a fervilhar de vida: como se se estivesse a assistir ao renascimento súbito da urbe de outrora. Na Taberna, naquela noite de breu frugal, quase dispensável, a tertúlia também saía reforçada com a afluência de emigrantes. Gonçalo, ao entrar, topou logo o Júlio Ventura, da Corujeira, altivo estivador em Bordéus, de farto bigode nietzschiano e um tanto trôpego; o Manel Vieira das Martianas, operador de máquinas numa renomada fábrica automóvel em Bremen, pendurado em ininterruptas cigarrilhas; o Vasco Parreira, de Vila Cortez do Mondego, relampejante sempre contra o que chamava de ‘este país’; o Manel Peres, conceituado – pelo menos assim o alardeava – retalhista farmacológico de Bruxelas, nascido e criado em Aldeia Viçosa, ostentando duas suíças que infundiam medo tem debaixo do braço um jornal desportivo; o António Paulos de Rocamondo, retorce-se na bancada de achaques lombares, na certa advindas do seu mister de ferrador na coudelaria de John Whitaker em Rochdale, a norte de Manchester. Havia mais três ou quatro convivas que Gonçalo nunca vira. Em duas mesas havia enchidos vários e pão da velha padaria do Mileu. E vinho. Para quê referi-lo? Os comensais têm três características vivenciais comuns: são todos emigrantes, quaisquer deles regressará um dia; mas nenhum deles retornará ao seu torrão de origem. Na verdade, compararam já o respectivo apartamento na cidade e vão à aldeia ao fim-de-semana. É um fenómeno sociológico inteiramente novo, uma mudança do paradigma do retorno – eis mais um factor de abandono das povoações. Pretendendo acabar com as conversas repartidas, Gonçalo, lança o mote para uma discussão colectiva. Exibe a capa da edição de O Interior daquele 24 de Agosto:
– Atentem: “Portagens fecham empresas e geram desemprego”
Luziu imediatamente robusta zaragata na Taberna. Todos os presentes conheciam a realidade das auto-estradas portajadas da Europa, mas os valores pecuniários praticados nas que ligavam Guarda a Torres Novas e Aveiro a Vilar Formoso equivaliam a ultraje… Um duro golpe nestas regiões desprezadas e tragadas pelo dente ferino de sucessivos governos. O Júlio Ventura era o que mais acirrava a fúria das palavras:
– São todos iguais estes políticos, todos! Em França, há alternativas às autoestradas quase tão cómodas como as próprias…
– Na Bélgica – aduziu o Manel Peres – é o mesmo, c’um damonho! Quem quer evitar autoroutes, tem outras opções com vias aceitáveis…
– Já para não falar da qualidade de vida – completou o Parreira, percebendo a duplicidade pícara da expressão usada pelo anterior interveniente – aqui as estradas, boas ou más, conduzem-nos sempre… à miséria!
Era certo. Regressariam a Portugal pelo coração. Não pela razão…
Entretanto, o látego dos incêndios florestais volta a flagelar a região centro do país e na Guarda infligiu danos irreparáveis a curto prazo… Mal se dá conta, perpassa pelas ruas da Mais Alta, ligeiramente atapetadas de folhame, uma calma elegia de Setembro finado, como só Eugénio a saberia cantar. 1 de Outubro. Dia de eleições autárquicas. Gonçalo lá foi à mesa de voto de Vila Soeiro, respeitante à União de Freguesias – esta novel divisão administrativa parecia-lhe tão ridícula quanto a sua designação – constituída por aquele pitoresco lugarejo juntamente com Mizarela e Pêro Soares. O encerramento das urnas vinha confirmar o esperado: Álvaro Amaro reeleito edil, com uma votação histórica. A mais elevada de sempre em autárquicas! A edição seguinte do semanário que Gonçalo, cada vez mais corcovado e roliço, lê, concentradamente, na namoradeira do seu exíguo habitáculo, enquanto uma brisa quase imperceptível ondeia a cortina da janela – é dedicada inteiramente ao novo mapa autárquico. O resultado eleitoral de Amaro é destacado no corpo do periódico e dá que pensar, numa cidade aferrada em rotinas inimagináveis e a do voto era mais uma. Os vários candidatos posicionam-se também como o era expectável: não há derrotados, obviamente, todos querem beber – nem que sejam apenas umas gotículas – da taça da glória. Quinze dias volvidos era novamente o fogo – desta vez nada metafórico – a assumir um estúpido e fatídico protagonismo na sociedade portuguesa. A ministra demite-se. A alma do país negreja pela voragem inclemente das labaredas.
Um céu vítreo, abundantemente constelado, com estrelas-cadentes em trânsito invulgarmente enlouquecido abobadava o parque da cidade, acabado de requalificar. Gonçalo visita-o movido pela curiosidade dos elogios ouvidos, mas também pela celeuma havida e que se levanta sempre de cada vez que se faz alguma coisa pela cidade. Lera a notícia n’ O Interior e passavam quatro dias sobre as cerimónias comemorativas dos 818 anos da outorga do foral sanchino que fundou da cidade. Foi a 26 de Novembro 1199. Qualquer guardense sabe disso. Gonçalo passeia-se vis-à-vis com o azul-turquesa que as luzes do lago expendem e o breu ameigado na pequena floresta arrebata-o para tempos idos; quando as árvores povoavam ainda a serra e configuravam à noite vultos antropomórficos que o apavoravam na mocidade. Estranhamente, não faz frio. Quer dizer, fazer, faz. Mas na cidade altaneira o frio só é levado verdadeiramente a sério quando termómetros congelam. De certo modo, tudo se está a transformar… Entra Dezembro e a seca prolonga-se com ele: a barragem do Caldeirão apresenta níveis hídricos baixíssimos, o gado invade o seu leito dará dessedentar-se e pastar, como o ilustra O Interior na sua edição de 7 de Dezembro. Os números seguintes revelam que o número de nascimentos decai assustadoramente; que a macrocefalia administrativa do país se acentua; que a interioridade passou de fatalismo a conceito governativo e faz parte de um elucidário de consulta politóloga.
Apesar de tudo – porque para o português tem de haver sempre um paliativo providencial para os infortúnios, sejam os reality schows ou o futebolista funchalense cujo nome me escapa – é Natal. Nesta época regurgitam milagrosamente as economias, os rostos iluminam-se e o consumismo ganha foros de impensável benignidade. E logo a seguir é a voragem de um réveillon nevado, registando-se assim, para gáudio do pagode, a sazonalidade colonizadora destas terras sertanejas e de abandono. Gonçalo esquadrinhou cada recanto de 2017, mas recusava o esboceto de um balanço. E como sempre fizera, juntou as cinquenta e duas edições d’O Interior daquele ano e confiou-as a um encadernador exímio, recluso no estabelecimento prisional. Esse volume, era o conto que ele vivera durante um ano na terra onde desejara que os seus ossos repousassem…
O nosso protagonista dormitava há quase duas horas. Um ralenti de turbinas indiciava uma aterrissagem tranquila. Gonçalo Gonçalves, filho de si próprio, corre a cortina do janelo da aeronave e contempla o formigueiro humano que freneticamente se saracoteava pelo asfalto de Orly. Estava em Paris.

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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