P – A Guarda é das Dioceses mais antigas do país, já foi um grande território, que ia do Douro ao Tejo, hoje vai até Alpedrinha, a sul…
R – Há uma paróquia mais a sul, que é Almaceda, no concelho de Castelo Branco, e é um paralelo mais a sul do que o da antiga sede da Egitânia.
P – Nós somos egitanienses porque mantivemos mais ou menos o território da diocese Egitaniense.
R – Sim, principalmente porque a sede foi mudada da Egitânia, atual Idanha-a-Velha, para a Guarda por D. Sancho I. Mesmo mudada a sede, o título manteve-se. Ainda em muitos espaços, afirmações e publicidades, a Egitânia e o egitaniense – ou o Egi – estão presentes, pelo menos a matriz está lá.
P – A Norte, Mêda e Foz Côa são da Diocese de Lamego, a oeste, Fornos de Algodres pertence à Diocese de Viseu, mas mesmo assim a Diocese da Guarda é maior que o distrito?
R – Sim, Mêda e Foz Côa são da Diocese de Lamego e de Fornos só temos duas paróquias (freguesias). Essencialmente metade da população vive no distrito da Guarda e outra metade, menos um bocadinho, vive no distrito de Castelo Branco.
P – Como é que o bispo gere o seu “rebanho”?
R – Apesar de tudo, há uma certa unidade, o maciço central da Serra da Estrela. A Diocese da Guarda organiza-se à volta da serra e depois tem dois braços estendidos, um vai beber ao Douro, a Barca D’Alva, e o outro vai saudar Castelo Branco em quatro paróquias. E há outro fator que nos identifica, pois temos 220 quilómetros de raia, que temos a sorte de partilhar com os nossos amigos espanhóis. Há dias estive em Vilar Formoso, na inauguração da ligação da A25 à autovia A62, e fui a Ciudad Rodrigo falar com o atual administrador diocesano e os problemas de lá são os de cá.
P – O despovoamento é algo comum nas Dioceses de Ciudad Rodrigo e da Guarda?
R – Com certeza, os nossos vizinhos espanhóis não estão melhores que nós. Se houvesse uma cooperação transfronteiriça mais eficaz podíamos ir mais longe, até em termos de suscitar ajudas da Europa. Se assim for, deixamos de ser periferias e passamos a ser um novo centro. É certo que já há algumas boas práticas, como o CEI [Centro de Estudos Ibéricos], mas teríamos de ir mais longe, sobretudo em termos de desenvolvimento aplicado no terreno. Há um fator que nos podia ajudar muito: o património afeto ao culto religioso, que tem sido pouco aproveitado em termos de desenvolvimento para as nossas terras. Os dados dos últimos Censos não surpreenderam, mas chamaram-nos a atenção para a tendência de desertificação das nossas terras. Na nossa Diocese todos os concelhos perderam população e o que menos diminuiu foi a Guarda – só 5 por cento –, enquanto há concelhos a ter quebras da ordem dos 10 e 11 por cento. Isto tinha que suscitar uma atenção especialíssima para este fator que nos condiciona não apenas a nós, mas ao país, pois com assimetrias desta natureza um país não pode considerar-se satisfeito e na rota correta do desenvolvimento.
P – Somos também um país envelhecido…
R – O terceiro país mais envelhecido do mundo! O primeiro é o Japão e o segundo a Itália, mas eles têm capacidades económicas e de desenvolvimento que não temos. Portanto, sentimos muito mais os efeitos deste envelhecimento e diminuição de população. O que se passa é uma razia. Aliás, como sabemos, o capital principal do desenvolvimento nunca foram os bancos, foram as pessoas. Elas também precisam de ser entusiasmadas para ficar por cá e não houve políticas e propostas adequadas para não se sentirem tentadas pela imigração.
P – O que pode a Igreja fazer para combater isso? Na sua mensagem, o Papa Francisco fala em colocar as pessoas no centro da atividade…
R – Essa é a mensagem que o Papa escreveu para o próximo Dia Mundial da Paz, em que diz que a verdadeira paz equilibrada só se consegue quando promovermos o diálogo intergeracional, uma correta educação e um trabalho digno para todos. São três fatores essenciais. Quanto ao diálogo intergeracional, a preparação da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) 2023, que terá lugar em Portugal – espero que a Diocese da Guarda receba vários jovens – será uma boa oportunidade. Em Vilar Formoso está a ser preparado um espaço, com o Memorial de Aristides de Sousa Mendes, para orientar e esclarecer os participantes. Tenho muita esperança que a organização da JMJ ajude a que as gerações mais novas comecem a entender que só aproveitando a riqueza de quem nos precedeu e que ainda está ao leme, mas que eles irão substituir amanhã, é que podemos criar energias de futuro. O Comité Organizador Diocesano põe muito empenho nisso, estamos à espera dos símbolos das Jornadas que irão passar praticamente por todas as paróquias. A mensagem que queremos levar é que sem história não temos futuro. Quanto ao aspeto do trabalho, estamos empenhados, apesar das nossas empresas já não terem pessoas para contratar e temos de as encontrar aqui.
P – Voltando um pouco atrás, que caminhos pode a Igreja promover para contrariar a crise de vocações?
R – Essa é uma realidade das Dioceses portuguesas e sobretudo desta Europa muito envelhecida e de costas voltadas para os valores, com um laicismo exacerbado e uma suspeita exagerada por tudo o que é religioso – e se tiver a ver com a tradição cristã, pior ainda. Esta Europa não está no caminho certo, todavia é uma realidade que estamos a viver. O curioso é que noutros lugares do mundo não é assim. O problema das vocações situa-se noutro âmbito: há muita procura da dimensão espiritual e de serviço à comunidade, que são valores importantes que uma cultura muito voltada para a produção e o consumo não cria espaço para que se possa pensar este ambiente das boas relações, do que quero promover como mais válido. Isso é uma lacuna da nossa educação. O projeto educativo do país tem de mudar. A educação é mais um “training” e muito pouco produção das capacidades das pessoas para serem criativas. O “training” não serve para o nosso futuro, o que precisamos é de uma educação que abra a criatividade.
P – Na sua mensagem de Natal falou na caminhada sinodal, do que se trata?
R – Explico num slogan: todos com todos à procura dos melhores caminhos para chegarmos à meta que a todos nos ajude. Isto tem a ver com o exercício da autoridade. A caminhada sinodal é a preocupação por envolver o mais possível todos os membros de uma comunidade na reflexão daquilo que é importante para todos afim de se chegar às melhores decisões que a todos contemplem. A caminhada sinodal está na sua primeira fase em toda a Diocese, a segunda será nas conferências episcopais de cada continente e a terceira será em outubro de 2023, com todos os representantes episcopais do mundo.
P – Hoje, as crianças já não estão à espera da prenda do Menino Jesus, mas sim do Pai Natal, como vê estas mudanças?
R – É uma tentativa de mudança cultural, pois o Pai Natal é uma importação, inspirada no S. Nicolau, um bispo dos países nórdicos que a tradição diz que distribuía bens aos pobres no seu trenó puxado por renas. Este quadro foi transformado no Pai Natal que entusiasma a criançada, numa tentativa do consumo crescer e de silenciar a realidade do Natal, que é o Menino Jesus. O Natal não é o nascimento de um adulto nem de um idoso, é de uma criança num berço, com um pai e uma mãe e com a descoberta do encanto desta criança por várias pessoas. Colocar a criança no centro do Natal tem de ser a preocupação de quem quer ser fiel à história para respeitar a nossa identidade.
P – A criança tem de ser o mundo do futuro e a aposta na liturgia?
R – Considerar cada criança o maior dom de Deus neste mundo é a tónica importante da prática da Igreja. Queremos valorizar a criança, mas aparecem situações desagradáveis que queremos enfrentar. Queremos defender os seus direitos, defendê-las de agressões e permitir que de uma criança saiam adultos sãos, saudáveis e capazes de transmitir entusiasmo à sua volta.
P – Um dos temas polémicos da Igreja é o dos abusos sexuais, nomeadamente de crianças, a tal ponto que o Papa Francisco deixou recomendações muito claras para se deixar de esconder este assunto. Em Portugal foram criadas comissões nas Dioceses, como está na Guarda?
R – As Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Vulneráveis foram criadas no ano passado para prevenir situações dessa natureza. Queremos, com as instituições, que não aconteçam esses abusos e termos um devido esclarecimento para que a proteção dessas pessoas não falhe. Quando esses casos acontecem, estamos disponíveis para que sejam analisados e comunicados a quem de direito. Na última assembleia plenária da Conferência Episcopal decidimos criar também uma comissão nacional para ouvir quem quisesse. Neste momento temos os instrumentos necessários para podermos dizer, a nós e à sociedade, que estamos aqui para seguir caminhos corretos para valorizar as nossas crianças.
P – A pobreza ainda tem muito peso nesta Diocese?
R – Ainda não a erradicámos, mas queremos contribuir para isso. A pobreza não se erradica dando de comer e condições de alojamento a toda a gente. Ela só desaparece quando as pessoas estiverem devidamente inseridas, e ainda falta muito para haver essa inserção cultural, laboral e na gestão da vida pessoal. É esse acompanhamento que temos de fazer, em que temos de operacionalizar os meios para identificar as situações e estar onde houver uma pessoa que precise de alguém ou de algo.
P – D. Manuel Felício está em “final de mandato”, supostamente até já deveria ter sido substituído, tem alguma informação sobre isso?
R – Em princípio devo pedir a minha exoneração até 6 de novembro de 2022, até lá compete ao Papa aceitar imediatamente o meu pedido, protelá-lo ou antecipá-lo.
P – Está indeciso?
R – Não, se viesse hoje não digo que ficasse descontente, até porque há outras formas de ajudar que não seja à frente de uma instituição como esta, que tem muitas situações que levam a um grande desgaste.
P – Foi um mandato com algumas dificuldades, como a pandemia, este é um momento difícil?
R – Estamos há dois anos sem poder viver a vida como estávamos habituados. Contudo, creio que estamos no caminho correto para ultrapassar tudo isto.
P – Durante o seu mandato o Museu de Arte Sacra ainda não avançou, como está o processo?
R- Haverá notícias em breve.
Luís Baptista-Martins