Cultura

O choro gigante da terra pequena

Escrito por Jornal O Interior

Primeiro vem o pai com o poder das palavras, depois a mãe com o pano da louça, mais tarde chegam os dias de luto, um talhante que chora, os castigos e uma criança de 11 anos que acredita que tem um Gabriel para o consolar e um Tarzan para lhe dar força.
Nesta vila tudo é pequeno. Tudo, menos as lágrimas e essa “Arte de Chorar em Coro”. Aquilo que o pai faz de melhor são os elogios fúnebres e, nessa capacidade de chegar ao coração dos vivos através dos mortos, o filho antevê dias de esperança porque «quando o pai faz um discurso fúnebre, as pessoas tratam-no bem, e quando as pessoas o tratam bem, ele trata-nos bem». Deslumbrado, o miúdo de 11 anos cresce com a noção de que a mãe não só não nasceu com essa vocação, como nem sequer se interessa pelo poder das palavras, em vez disso traz amparo com as suas mãos esguias. Até aqui, tudo parece mais ou menos calmo, mas nesta história cedo percebemos que a melancolia sofre uma matemática complicada porque se há aqueles que são «missionistas» e choram porque já perceberam «a gravidade da vida», também há os que não o são e aí as palavras do pai não têm impacto algum, por isso a família tem de estar sempre a fazer contas.
Como sustento, os pais têm uma pequena mercearia, mas o negócio nem sempre vai de vento em popa e se ninguém morrer a paz fica logo descoroçoada. Nesses altos e baixos, notamos que a anormalidade de uns é a normalidade de outros, e se, pelo meio, nos meterem bichos na cabeça podemos sempre contar com a criança que nos mostra que até nos lugares mais improváveis existe espaço para a ternura. Mas quando Asger (o filho mais velho que estuda em Sønderborg para ser arquitecto) visita a família somos confrontados com o facto de o pai gostar de dormir com a filha no sofá vermelho e, aí, todas as emoções ficam à flor da pele: se por um lado temos o tremor do pai, por outro encontramos a passividade da mãe, a fúria de Asger, o deslocamento de Sanne e a solidão da criança de 11 anos, que só conta com ele próprio para resolver os problemas do “lar”.
Mas, felizmente, Asger é sábio: «Compra uns coelhos – diz, por fim. – Sentir-te-ás melhor, comigo funcionou. Pode-se confiar nos coelhos, arranja bastantes». Encorajado com o conselho, o menino pede dinheiro à mãe e, a partir daí, os seus dias nunca mais serão solitários. Ainda assim, a Bíblia ensina «não matarás (…) ou vais parar ao inferno», só que alturas há em que faz falta um bom funeral e por bom funeral entenda-se aquele que é «solene, opressivo e histérico». Estamos numa terra (como já referi) onde tudo é pequeno, mas quando a vida expande avistamos Sønderborg e aí «a coisa mais natural do mundo é, repentinamente, que haja luz em todo o lado, e estranho seria que a apagassem subitamente. Alguém como eu diria então: era o que eu temia, não podia durar muito. Mas isso é porque sou da aldeia; Sønderborg já é grande há muito tempo».
Nesta e em muitas outras passagens encontramos um Erling Jepsen sagaz, e embora estejamos perante uma história de muitos choros, o autor faz-nos curvar da lágrima ao riso e do riso à lágrima sem que necessariamente tenhamos de remover ou ampliar estados de espírito. Forte, por ultrapassar os limites do coração prudente, é, no fundo, uma história que transborda. Mas, afinal, quantas lágrimas poderão correr numa terra pequena? E quantas dessas lágrimas serão legítimas?

Melanie Alves*

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com

Sobre o autor

Jornal O Interior

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