Cara a Cara

«Quis dar voz a um tempo de exceção e incerteza»

Cara
Escrito por Jornal O INTERIOR

Entrevista a Isabel Cristina Mateus

P – De que trata o seu livro “Janela Indiscreta – Crónicas da Emergência”?
R – Trata-se de um conjunto de crónicas escritas originalmente no Facebook desde o primeiro dia do “Estado de Emergência” (de 19 de março a 2 de maio de 2020). São 45 crónicas (mais duas daquele que foi o reencontro possível com o mundo durante o “estado de calamidade”) que são também um diário íntimo dos dias do confinamento. Uma espécie de “diário da peste”, pedindo emprestado o título a um escritor como Daniel Defoe e, mais recentemente, às crónicas de Gonçalo M. Tavares. Um diário da peste declinado no feminino. Ao escrevê-las pretendi registar, ser testemunha e dar voz na primeira pessoa a um tempo de exceção e de incerteza, mas também pensar-me no interior desse tempo, resistindo ao vírus do medo que diariamente as televisões e os media nos iam inoculando. Procurei colher sinais, imagens do quotidiano, ir em busca das personagens anónimas dos dramas ocultos a que a rua deu palco por estes dias, num desejo de legibilidade, mas também da proximidade ou tangibilidade possível em tempos de distanciamento.

P – O confinamento foi um período inspirador, ou nem por isso?
R – Não creio que tenha sido um período mais inspirador do que outros momentos da minha vida. A escrita tem-me acompanhado ao longo do tempo, ela é para mim respiração mais do que inspiração. O que aconteceu foi que o primeiro confinamento, com o encerramento da minha Universidade, o aparecimento das máscaras, a imagem dos ventiladores nos hospitais, o irrespirável do medo, tornou não apenas mais urgente a necessidade de escrita (no sentido em que Maria Alzira Seixo falava, em 2014, da «urgência da literatura»), como lhe conferiu um carácter sistemático, transformando essa necessidade num gesto diário, íntimo, de ensaio do pensamento e de leitura do mundo que fui partilhando numa das redes sociais. O confinamento em casa, o teletrabalho e a solidão tornaram urgente este modo de manter a proximidade do mundo. De respirar sem máscaras. Por outro lado, o incentivo dos leitores que diariamente seguiam estas crónicas (…) foi decisivo para que a ideia de publicação fosse ganhando corpo.

P – Qual é a memória mais marcante que guarda desses dias?
R – Guardo várias memórias e imagens desses dias, o silêncio da cidade e o canto dos pássaros, os bancos de jardim selados com fitas, os aviões em terra, o Papa falando para uma praça deserta. Mas de todas, a que mais me marcou, talvez pelo inesperado e pelo choque quase grotesco que provocou em mim, foi a montra de uma loja antiga da cidade de Braga. Aventurei-me um dia a pé, já bastante depois da Páscoa, até ao centro da cidade. Estava um dia cinzento, um silêncio de chumbo, quando dei por mim a olhar a montra exuberante da Queijaria Central (misto de pastelaria e de loja gourmet, aberta ao público desde 1952). Por instantes, senti-me como se fosse a única sobrevivente de uma qualquer estranha catástrofe. Impressionou-me tanto essa imagem de um tempo parado que lhe dediquei uma das crónicas: “Vanitas” é nome de montra”.

P – E o que mudou na sua vida após o confinamento?
R – Os dias de confinamento mudaram a perceção do mundo à minha volta, os pequenos gestos do quotidiano, a minha disponibilidade para os outros, o modo como passei a usufruir de espaços da casa a que antes não dava muita importância, como as varandas. Estou hoje mais atenta à minha rua e às pessoas, dou hoje mais importância ao comércio de proximidade, à necessidade de alterar hábitos e modelos de consumo em nome da preservação do ambiente. Por outro lado, se as ferramentas digitais foram um auxiliar precioso, indispensável mesmo, hoje estou mais consciente que a chamada “transição digital” tem de se traduzir em políticas que evitem a desumanização das sociedades e do trabalho, saibam defender a privacidade e a liberdade individual.

P – O livro vai ser apresentado na Guarda por Jorge Barreto Xavier. A que se deve esta escolha?
R – A decisão de apresentar o livro na Guarda teve a ver com o desafio que me foi feito por alguns amigos e com os condicionamentos à deslocação impostos pela pandemia que inviabilizaram a sua apresentação quando foi publicado pela editora Labirinto, em dezembro de 2020. Assim sendo, pareceu-me feliz a ideia de reunir na Guarda, a cidade onde nasci, um conjunto de amigos de infância e de juventude de quem me tenho mantido mais ou menos próxima nestes anos, alguns dos quais acompanharam diariamente (e incentivaram) a escrita destas crónicas. Jorge Barreto Xavier é um deles. O facto de ter estado desde sempre ligado à cultura e de ter escrito, para além de ensaios, um livro como “Alexandria”, um conjunto de histórias sobre a linguagem, a literatura e os seus poderes que é também uma homenagem a um escritor que ambos admiramos como Jorge Luis Borges, fez dele uma escolha natural neste contexto. Só posso ficar-lhe grata por aceitar o desafio.

P – É natural da Guarda, qual é o sentimento quando regressa?
R – De cada vez que volto à Guarda sinto que regresso a casa. Mas o que até há uns anos era encontro, alegria, aconchego familiar perdeu-se por força das circunstâncias da vida. Hoje, voltar à cidade está indelevelmente marcado pela perda, pela dor de uma casa desabitada, mas plena de memórias felizes. São essas memórias que sempre me trazem de volta, mesmo se voltar significa um misto de sentimentos contraditórios. Ainda assim, mesmo à distância ou ressumando saudade, sei que estas pedras graníticas, discretas mas resistentes às intempéries, são a minha raiz. São parte de mim.


ISABEL CRISTINA MATEUS

Idade: 59 anos

Naturalidade: Guarda

Profissão: Professora universitária

Currículo (resumido): Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de Coimbra e doutorada em Ciências da Literatura (Literatura Portuguesa) pela Universidade do Minho, onde é professora auxiliar no Departamento de Estudos Portugueses da Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas; Investigadora do CEHUM (Centro de Estudos Humanísticos) e coordenadora responsável pelo grupo de investigação Poéticas em Língua Portuguesa. É coeditora de vários volumes temáticos e autora de diversos ensaios sobre autores da literatura portuguesa moderna e contemporânea; Recebeu o Prémio de Ensaio Óscar Lopes (2007) e Prémio de Ensaio Pen Clube (2008); Autora do roteiro literário “Viajar com… Maria Ondina Braga” e cocoordenadora da edição da “Obra Completa de Maria Ondina Braga” pela INCM; Membro da direção da Associação Portuguesa de Escritores e da Comissão LATE do Instituto Camões. É colaboradora, desde maio, de O Interior

Filme preferido: “Johnny Guitar”, de Nicholas Ray

Livro preferido: É difícil responder a essa pergunta, porque seriam muitos (…). Direi apenas que o livro onde tudo começou foi “A Fada Oriana”, de Sophia de Melo Breyner Andersen

Hobbies: Jardinagem, caminhadas, “bird-watching”

Sobre o autor

Jornal O INTERIOR

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