Cara a Cara

«Falta fazer chegar a ajuda humanitária, sobretudo comida, abrigos e roupas, a vários locais»

Escrito por Jornal O Interior

P – Foi o primeiro jornalista português a chegar à zona devastada da Beira após a passagem do ciclone Idai. Qual é a imagem que guarda desse contacto inicial?
R – Uma correção: eu coordenei a equipa da agência Lusa que se deslocou para a Beira um dia antes do ciclone e que primeiro reportou e enviou imagens do que se passava. Ficámos incrédulos ao ver correntes fortíssimas de rios a transbordar e a levar tudo na frente, criando lagos gigantes. Tive que fazer a produção a partir de Maputo. A Beira estava “apagada” do mundo, sem eletricidade, nem telecomunicações. Entrar lá era como cair num angustiante buraco negro.

P – Quais são as maiores dificuldades de um repórter no pós-furacão em Moçambique?
R – Já passaram 15 dias e as maiores dificuldades continuam a ser a falta de telecomunicações nalgumas zonas e a ausência de acessos para chegar a alguns locais, mas a situação está a melhorar dia após dia.

P – Qual foi o pior momento deste trabalho?
R – Ouvir os relatos de quem sobreviveu às enxurradas e às cheias que depois se estabeleceram agarrado a árvores e que viu familiares e amigos caírem à água por cansaço. A recolha de cadáveres com a descida das águas. A descrição de fome de mães com três ou mais filhos que deixaram tudo par trás.

P – E o mais compensador?
R – Foi assistir à solidariedade internacional que chegou à Beira e permitiu salvar centenas de vidas. Essa assistência continua a fazer a diferença agora no combate à fome e a doenças derivadas das águas estagnadas, como a cólera e malária.

P – Quinze dias depois, o que falta, ou o que é preciso fazer, para ajudar as pessoas afetadas?
R – Falta restabelecer a energia elétrica e as telecomunicações a 100 por cento, falta fazer chegar a ajuda humanitária, sobretudo comida, abrigos e roupas, a vários locais.

P – Como jornalista, como vê a reação das autoridades moçambicanas à tragédia? E a das autoridades portuguesas?
R – As autoridades moçambicanas emitiram avisos, mas não conseguiram evacuar locais baixos onde viviam milhares de pessoas. O Governo mobilizou-se na Beira logo que foi possível lá chegar, mas ficou patente a falta de meios de salvamento e socorro. Felizmente muitos países amigos e empresas privadas acudiram de imediato, desde logo a África do Sul. Ficou demonstrado que Moçambique tem muitos amigos. Portugal é um deles. Demorou mais um dia ou dois a responder, mas está presente em força na assistência.

P – Há quanto tempo é o delegado da Lusa em Moçambique e como é ser jornalista em África?
R – Sou delegado há dois anos (desde 2017) em Moçambique, após quatro (desde 2013) na Guiné-Bissau. Passar a ser jornalista em África é aprender a relativizar problemas ao descobrir que o mundo é muito maior e diferente daquele em que pensamos viver em Portugal. É valorizar aquilo que damos por garantido no nosso país de origem, como a alimentação, assistência médica básica e educação. Por muito que os critiquemos (e bem).

P – Quais são as maiores dificuldades do dia-a-dia de um jornalista em África?
R – Conseguir passar o teste da paciência que a realidade nos impõe. Em cada canto há usos e costumes que falam mais alto que a voragem mediática na qual somos treinados. Aqui, o autocarro não tem hora: só parte quando está cheio.

Perfil de Luís Fonseca:

Naturalidade: Covilhã

Idade: 43 anos

Profissão: Jornalista

Currículo: jornalista da Lusa – Agência de Notícias de Portugal desde 2001, estudante de Design Multimédia da UBI

Livro preferido: “Ebano”, de Ryszard Kapuściński

Hobbies: Programação para a web

Sobre o autor

Jornal O Interior

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