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Wojtyla

Razão e Região

Não é possível deixar de escrever sobre o facto que, nestes dias, atraiu a humanidade. A morte de Karol Wojtyla. Wojtyla, o Grande, como muitos já o começam a definir. Até porque, qualquer que fosse o personagem concreto, a figura do Papa é sempre muito impressiva aos olhos da humanidade. Trata-se, afinal, do líder da maior e mais diversificada organização humana mundial. Depois, tem dois mil anos e um saber de vida e de história feito sem provável comparação. Saber que tem sido sabiamente acumulado, conservado e adaptado às novas circunstâncias, sem a perigosa obsessão da vertigem do tempo. E a figura formal do Papa tem constituído, na verdade, o ponto mais alto de convergência da complexa história da Igreja católica, o símbolo vivo que encarna os pontos cardeais que balizam a doutrina e a prática religiosa católica. E nem sequer lhe falta aquela dimensão institucional de Estado que o torna, no plano laico, igual entre iguais, na sua profunda diferença matricial: está enraizado nesta mundo em todas as suas dimensões, mas a sua génese está noutro lugar.

O que nos toca profundamente na morte de um Papa é precisamente a cedência física de uma extraordinária força simbólica, a sua terrena sacralidade, a ruptura física de uma dimensão afinal quase intangível. E a Igreja sabe disso. E por isso deixa que a tradição se cumpra, sem se deixar tomar pela vertigem da aceleração do tempo. Trata-se, de facto, de um saber antigo. O sofrimento exibido deste Papa não foi, por isso, atalhado. Pelo contrário, pôde consumar-se lenta e visivelmente. Porque lá estava a doutrina da Igreja católica para interpretar essa dor tão visível. Ou seja, a Igreja não teve medo de expôr a fragilidade física do seu guia espiritual porque essa exposição também podia mostrar, de forma exemplar, o outro lado. Precisamente aquele que mais lhe importava: a força moral da crença. Lembram-se da violência brutal da filme «A Paixão de Jesus Cristo»? Tanta violência só poderia querer mostrar o outro lado do sofrimento: a resistência e a elevação espiritual.

O que é impressionante é esta convivência de um momento tão radical e profundo para a Igreja com o império do simulacro televisivo universal. Mas afinal não foi o Pontificado de João Paulo II marcado precisamente por uma profunda revolução da comunicação da Igreja e do próprio Papa? Comunicação física e comunicação electrónica, viagens ao terreno concreto da evangelização de multidões por todo o mundo replicadas até à exaustão pela televisão. Também chamaram a este Papa, o Papa da televisão. Ele convivia tão bem com ela como com a fisicidade e a emoção das multidões. Não foi por acaso que, como refere Timothy Garton Ash, Clinton disse que o aterrorizaria ter que apresentar-se a eleições contra Wojtyla, precisamente por essa sua capacidade de comunicar com multidões como se estivesse a comunicar com cada um individualmente. Mas, pergunto eu, não é essa precisamente a característica do universo televisivo? Aquele universo a que Paul Virilio chama «multidão solitária» ou «solidão múltipla»?

No terreno concreto da mobilização de multidões como no terreno da expressão televisiva dos eventos papais, Karol Wojtyla emergia como um enorme protagonista. Ele, de resto, projectou-se mais nestes terrenos do que no terreno silencioso da diplomacia de palácio. E foi tão avançado neste campo quão conservador em tantos outros campos. A verdade é que, representando plenamente uma igreja tão complexa, também não podia deixar de fazer convergir nele as mesmas tensões contraditórias que a atravessam. Por exemplo: modernidade comunicacional com conservadorismo de valores.

Uma coisa é certa, Wojtyla agiu lá bem no interior da história, captando bem os seus ritmos e levantando a voz para os favorecer ou para os travar. Foi, portanto, um personagem com uma enorme densidade histórica e, neste momento, seja-se crente ou não, é justo prestar-lhe uma sentida homenagem.

Por: João de Almeida Santos

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