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Viver com ossos de “cristal”

A vontade de viver é mais forte do que os problemas que o desgastam fisicamente: António Fortunato tem um cancro raro mas, apesar das limitações, quer ter a oportunidade de fazer mais.

O rosto não esconde as marcas deixadas pela doença e as dores não o largam, mas ele faz-lhes frente com uma determinação intocável. António Fortunato, de 29 anos, viu ser-lhe diagnosticado um mieloma múltiplo, uma doença rara, há mais de dois anos e desde então trava uma luta desigual, pois a força do cancro torna-o frágil perante tudo o que o rodeia.

«Posso cair a qualquer momento, acontece-me frequentemente», diz António Fortunato, natural da Vela (Guarda), a O INTERIOR. Os obstáculos estão nas pequenas coisas do dia-a-dia: «Tenho dificuldades motoras, 80 por cento de incapacidade; a doença afeta-me bastante os ossos porque o cálcio não passa e partem-se facilmente», explica o jovem, que se desloca todas as semanas «duas ou mais vezes» a Coimbra para análises, tratamento e transfusões de sangue. Apesar disso, a sua curiosidade sobre esta doença é muita: «Tenho uma biblioteca enorme de manuais técnicos, que devo ter de vender, tal como material informático», admite o António Fortunato, salvaguardando que foi ajudado a adquirir «alguns equipamentos informáticos», essenciais para se organizar. «Faço uma gestão rigorosa da medicação e não só, faço contas todos os dias», confessa o guardense, que trabalhou 10 anos e recebe uma pensão de invalidez de 250 euros. «Por vezes só adormeço com o aquecedor ligado no máximo, tenho contas horríveis de eletricidade», exemplifica.

Mas o jovem procura ter uma vida normal, tanto quanto possível, pois tem de fazer face às despesas: «Gostava de trabalhar e estou a esforçar-me para adquirir mais conhecimentos, tenho uma agenda muito complicada», garante. As viagens a Coimbra – feitas pelos bombeiros, sem custos – sucedem-se, mas António Fortunato também frequenta um curso de formação de formadores e outro de informática no Politécnico da Guarda. Foi na formação que reencontrou Joana Costa, conhecida dos tempos de escola, que louva o seu esforço, pois ele está ali para «tentar ter mais algum diploma que lhe permita, mesmo com a incapacidade física, arranjar uma forma de subsistência extra», salienta a formadora. «A sua vontade de passar por cima disto é tanta que choca-me que nos últimos três anos não se tenha feito nada para melhorar a sua situação», lamenta Joana Costa.

«Só queria alguns direitos na Segurança Social», acrescenta o jovem, recordando que, quando o médico lhe deu apenas um mês de vida, «disseram que não valia a pena investir em mim». Os meses entretanto sucederam-se mas há coisas que não mudam: «Sinto-me bastante discriminado relativamente a muita coisa», admite António Fortunato, que confessa «já não conhecer o resto da cidade». Tudo o que faz é com muito esforço e, por vezes, tem mesmo de ficar acamado, ainda que precise de «uma cama articulada porque a minha é muito baixa». Porém, as despesas inadiáveis fazem com que adie outras, como a ambição de ir a Salamanca: «Há lá um médico bastante conhecido, mas ainda não tive disponibilidade ou quem me levasse», refere, acrescentando que «não há cura para esta doença, há tratamentos e são caríssimos». Com a doença perdeu 11 centímetros de altura e tem acumulado muitos ossos partidos. «Tenho as vértebras em cima umas das outras, são muito frágeis, a mínima coisa pode ter sérias consequências», explica António Fortunato.

À procura de novas oportunidades

As ajudas são poucas e, a residir com a mãe, tenta dar resposta às necessidades de ambos. «A minha terapia tem sido ouvir música e amigos, que, por vezes, nem eram os mais próximos, e que me vão despertando para uma nova batalha», adianta António Fortunato. «Eu nem devia estar aqui [na redação de O INTERIOR]», confessa, com um sorriso tímido, sublinhando que «às vezes aparento estar bem, mas é só aparência devido à força de vontade e a muita medicação». Dentro de si tem uma vontade enorme de vencer, mas isso, por vezes, «funciona contra ele: ter bom aspeto, não perder o cabelo, não emagrecer muito; as pessoas podem achar que afinal está bem», sublinha Joana Costa. O formando confirma: «Não me veem com o lombostato ou colar, por vezes não uso para não “agredir” as pessoas e para me sentir bem comigo próprio, até porque faz cortes muito profundos na pele», refere António Fortunato. Mas o guardense não deixa que isso o desanime: «Continuo sempre a lutar e se me derem oportunidade de fazer mais alguma coisa para ter mais rendimentos, adorava, para poder pagar as minhas despesas e ter melhor qualidade de vida», apela.

Joana Costa elogia a determinação do seu formando

Comentários dos nossos leitores
antonio vasco s da silva vascosil@live.com.pt
Comentário:
É vergonhoso o caso, não se pode ficar doente neste país. Sem a ajuda dos familiares, seria impossível. Uma viagem a Salamanca não é assim uma coisa do outro mundo. Creio que existe forma de poder ajudar, a Guarda tem de ter uma atitude e ajudar naquilo que puder este jovem. Para a Segurança Social o importante é que casos como estes morram rápido. Pena é ainda não termos no papel a lei da eutanásia, pois, na prática, ela já se aplica e muito por este desgoverno. Forca para este jovem e sua família e acreditem: Deus pode ajudar.
 

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