Quando alguém me impingiu o Paco, tornei-me meio dona de um cão. Gostava muito dele, “levá-lo à rua”, é que já era outra conversa. Abria-lhe a porta e pronto! Calhou, nesse vai vem, aperceber-me de outro rafeirito que por ali andava. Sem coleira, nem qualquer indício de ter, ou ter tido dono. O cachorro teimava em ser meigo, simpático, muito brincalhão com todos. Chegado o inverno, um dos vizinhos passou a deixar o portão do quintal aberto para que pudesse abrigar-se, acabando por ficar com ele. Assim que o vi todo “vestidinho”, elogiei-lhe o fato, contente por ele ter encontrado quem o quisesse. Então, não é que me retorquiu com uma valente rosnadela! Olha, olha, afinal tudo quanto alguns cães precisam, para ser cães, é de um dono e uma coleira.
Espertos, os bichos. É que não é só o garantirem cama, mesa e roupa lavada, é também fazerem-no parecendo que é tudo por altruísmo e amizade. Bem, não sei se posso afirmar que todos os cães são assim tão espertos. Agora, que o cão Toi foi um rafeiro, vadio, muito esperto, foi. Vindo não se sabe de onde, começou por fazer o reconhecimento da zona, identificar as boas almas, fazer-se seu amigo e, no fim, acabou tendo o usufruto de um quintal. Por vezes, esquecida do seu novo mau feitio, atrevia-me a passar junto ao portão, ele é que nunca mais foi cão de festas. Num desses episódios, lembro ter pensado que talvez a segurança de um quintal acabasse por lhe aliviar o peso do pedaço de couro com que o apertaram no pescoço. Como o boxo não conseguia desligar uma coisa da outra, passou a lidar à rosnadela com quem se aproximasse do seu reduto.
Há tempos, já o cão Toi morrera de velhice, há um par de anos, voltou a aparecer por aqui outro cão vadio. Um Serra, lindo, imponente sob duas orelhas levantadas e um focinho muito preto. Só que este cão, talvez por não ser rafeiro, nunca se fez de simpático, nem revelou qualquer meiguice para com quem quer que fosse. Limitou-se a fazer do declive, do canteiro do meio da estrada, a sua cama e a aceitar o prato que ali lhe deixavam. Alguns dos vizinhos bem que tentaram guardá-lo nos seus próprios quintais, com subterfúgios e promessas de boa vida, mas, qual quê! O bom do Serra saltava por cima de qualquer muro, ou portão, e lá ia aninhar-se na “sua” relva. Infelizmente, cão de raça parece que não pode escolher destino, nem dono. Depressa apareceu quem, mesmo sob os protestos, fraquitos, de metade da vizinhança, o levasse. À força, evidentemente! “Não se preocupem que eu trato-o bem!” Afiançava, enquanto o prendia dentro de uma carrinha de caixa aberta.
Sem conseguir perceber se aquilo foi um resgate, um rapto, ou uma adoção, ainda hoje recordo a maneira com que trataram logo de impedir, o pobre do Serra, de escolher. De decidir, por ele mesmo, se queria, ou não, uma coleira. Vida de cão é tramada, concluo! Quando um cão nasce sem dono, se não quiser, ou não conseguir, arranjar um, o risco de que o levem, à força, é certinho!
Por: Fidélia Pissarra