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Viajar até ao fim

Tresler

1.O viajante de meia idade, que é retrógrado na condução do seu automóvel, conseguiu até hoje resistir à bondade dos GPS e confia na bondade humana e na aceitação de que há algo que se chama “bem público”. Este há de prover a que haja placas suficientes nas vias e rotundas sem ter que parar para pedir explicações ao gasolineiro. Não é assim na verdade. Os decisores de placas, que deviam ser de fora do local onde elas devem ser colocadas, fazem subentendidos que um estranho não entende e imaginam que os visitantes deduzem conclusões sem premissas. Nas autoestradas de modo geral as coisas estão bem para o viajante mas nas pequenas estradas e nos acessos às grandes vias, milagre é o viajante não se enganar com a poupança de informação.

A vida são sinais que enviamos aos outros e o viajante, que também tem os seus pecados, confessa que também não compreende a preguiça dos automobilistas em fazer sinais na autoestrada ao mudar de via ou ao retomá-la ou na mesma situação nas rotundas. A maioria acha isso redundante e sem sentido quando há tanto espaço a utilizar. Talvez tivessem razão se não fosse o caso de ser necessário muita informação clara num espaço de conflitualidade e de procura de controle de um espaço que continuamente muda de dono. Viajantes colegas, leiam as regras que agora estão a ser divulgadas nas redes sobre uso de sinais nas (auto)estradas e circulação nas rotundas. Aquilo não é “tudo nosso”.

2.A televisão descobriu a gastronomia como ingrediente da informação-espetáculo e, vai daí, não nos larga em cada telejornal: ele são os restaurantes de todo o país numa autêntica “Volta a Portugal”, os festivais de comida, da feijoca ao marisco, as idas ao mercado, o entrevistar dos comensais entre duas garfadas ou da peixeira a abraçar as suas sardinhas, os chefs vedetas a dar o seu palpite. Tudo o que envolve comezaina faz furor nos noticiários, com promoção de todo o tipo de realizações, para noticiar quase nada. Em alguns casos é mesmo publicidade encapotada.

E agora, caros amigos (viajantes), lembram-se de alguma vez neste período de férias e de tanto tempo livre de tantas pessoas, terem visto nos telejornais dos canais generalistas a promoção de uma exposição, de uma galeria, de um museu, de um evento cultural fora da rotina do consumo (do “mainstream”, como agora se diz)? Como compreender que as localidades que têm praias e museus tenham aquelas a abarrotar e estes às moscas? E nos dias em que o tempo está “mau” com nuvens ou chuva (supõe-se que “mau” para banhos) não se consegue contrariar a vontade de ficar em casa junto dos ecrãs, deixando instalar a ideia de que em zona balnear só água e calor é que contam, não havendo espaço para outros lazeres. Maldito calor!

3.O ser viajante implica que… se conviva com outros viajantes. Desta afirmação tão evidente resulta uma estranheza: é que os espaços que visitamos em tempos de turismo escasso se revelam, anos depois, muito diferentes, dada a sobreocupação dos mesmos. As pessoas que nos recebem não são as mesmas, não podem receber o dobro das pessoas da mesma maneira e às vezes o viajante pergunta-se mesmo o que anda ali a fazer numa procissão de pessoas, quase todas elas à procura do fotografável, sem tempo e condições para a interiorização ou para estar tranquilo (“lentamente”) a ler um painel informativo, sendo que a maioria aliás se afasta de tudo o que se pareça com um texto.

Mesmo em locais de natureza relativamente interiores, a procura chega a surpreender o viajante. Nos Passadiços do Paiva, uma ideia luminosa traz para o local centenas de pessoas durante a semana e aos milhares ao fim de semana. Passadiços de tábuas, uma ponte pênsil, açudes aqui e ali para banhos, o prazer da caminhada de 8 quilómetros, o que quer melhor o viajante? O que não lembrou ainda: um transporte público no final do percurso, melhores instalações sanitárias, melhores estacionamentos. Só lembra depois. E já agora um aeródromo seria o ideal: o viajante, habituado aos luxos das autoestradas, vê-se à rasca para aguentar longos minutos de curvas e curvas de montanha, mais do lado de Castelo de Paiva do que do lado de Arouca. No fim, diga-se a verdade: é difícil lá chegar mas sentimo-nos compensados. Resultou bem.

4.O viajante anda em viagens há anos mas descobre pouco a pouco que ele próprio é a soma dos anos que somou e por isso sente, como contrapartida da segurança e da ponderação que os anos conseguem, a passagem do tempo no número crescente de aselhices ou hesitações, nos enganos de itinerário, nas vertigens experimentadas numa torre ou num teleférico, na falta de entusiasmo por algo em que vê os filhos eufóricos, na desesperança de convencer os outros sobre aquilo que para ele é “tão racional”. Por isso a viagem é também uma experiência de vida, uma metáfora da viagem que um dia atingirá o seu fim. Inocência, amadurecimento, segurança e decrepitude têm o seu tempo. A viagem, pela descoberta da alteridade nos espaços e nas pessoas, ajuda os viajantes a aceitarem o seu tempo. Viajar até ao fim.

(Para o pós-férias, porque não reler a “Viagem a Portugal”, de José Saramago, e o “Portugalmente”, de Jorge Carvalheira, ambos com interessantes impressões de viagem? Convites a outras viagens)

Por: Joaquim Igreja

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