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Viagens na A23

Quebra-Cabeças

2 de Agosto de 2003. Vou jogar o Nacional de Equipas de Xadrez em Lisboa. Comigo vão o Kevin e o Rui, o Javier Moreno já lá estava de véspera. Saímos às nove da manhã e chegamos muito mais cedo que o previsto. É verdade que o Interior e o Litoral se aproximaram, com consequências que pouco a pouco irão mudando as nossas vidas. Para já, apenas isto: chega-se a Lisboa em menos de três horas. Durante a semana que se seguiu houve a canícula, jogos num recinto fechado e sem ar condicionado, as notícias diárias sobre cidades cercadas pelo fogo.

10 de Agosto de 2003. Regressamos com a taça de campeões. Na A1 ficamos quase meia hora parados no meio do trânsito. Com a passagem por Santarém começa a haver menos carros e, já na A23, depois de Abrantes, rareiam cada vez mais. Começa então a cheirar a queimado. O termómetro, às dez da noite, mostra ainda 36 graus. Quando abro a janela, a confirmar, entra um bafo de ar quente – com cheiro a carvão. Dizia Pacheco Pereira, no Abrupto, que o negro engole a luz. É verdade: entre a noite e o negro que ficou depois dos fogos não se pode ver nada, apenas adivinhar. E cheirar.

17 de Agosto de 2003. Faço pela primeira vez de dia a A23, depois dos incêndios. O cheiro mantém-se mas agora vêem-se os quilómetros e quilómetros seguidos de floresta destruída. Entre Castelo Branco e Mação ardeu a maior parte e em muitos sítios pouco sobrou dos pinheiros e eucaliptos ardidos. Há vários locais em que se vê que o fogo passou a autoestrada. A destruição mostra algo em que ainda não tinha pensado, habituado que estava a vê-la como parte integrante da paisagem: a floresta, no centro do país, é praticamente a única fonte de riqueza visível da estrada.

Imagino o aspecto desolado daquelas montanhas e vales quando forem arrancadas as árvores queimadas, ou quando estas acabarem de apodrecer. Imagino também o que se vai fazer a seguir e aposto, dobrado contra singelo, que se vai manter a florestação em pinheiros e eucaliptos.

Há uma coisa que os jogadores de xadrez sabem, melhor que ninguém: as coisas que fazemos têm consequências e a maior parte destas são previsíveis, se não em sede de certeza matemática, ao menos em termos de probabilidade. Às vezes as desgraças não acontecem, mas apenas porque temos sorte, como eu a tive no Nacional de Equipas no jogo com a Académica. Mas é, repito, apenas sorte, e eu sei que se der ao meu adversário a mesma oportunidade uma segunda vez ele a vai aproveitar. De certeza.

O que aconteceu nestas duas primeiras semanas de Agosto estava já escrito no chão e estava apenas à espera de uma ocasião para acontecer. Só não viu quem não quis e só quem não quer ver ignora que para o ano, ou para o próximo verão quente, vai arder o que resta.

Por: António Ferreira

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