Arquivo

Viagem ao fim da noite. Lisboa. Ulisseia 

Ler para Querer

Este texto de 1932 deve ser revisitado. É na verdade uma viagem interna e externa à personagem principal (Ferdinand Bardamu), entre a França, a África e a América. É ainda um périplo íntimo e público no qual Céline, o autor real, viaja até ao fim do Ferdinand Bardamu ou será antes o contrário?

A vida de Bardamu é pois o retrato da vida de um médico, rodeado de mulheres, de famílias carenciadas que não tem domingos nem dias feriados e cuja própria vida se torna uma morte em suspenso.

São muitas as páginas difíceis porque estão repletas de frases bombásticas, sonoras e cortantes, irónicas e assertivas, entrelaçadas por raros episódios ternurentos que contam a viagem iniciática e sentimental de um jovem pobre entre dois mundos, entre duas guerras e entre ele e si-próprio. O resto é pura agressão sintáctica e lexical mantida até ao limite na tradução para português. A mesma domina ainda a narrativa que traduz um longo processo de (de)composição pressuposto pela guerra e a morte, entidades nocturnas.

Será um romance de construção que jaz na destruição: nasce e cresce da podridão da personagem, sempre em estado de sítio. Será ainda um romance de personagem, poético, de viagem e até da comédia humana pela plêiade de personagens que perfazem o cenário social e humano. É marcadamente também circular na sua forma narrativa (os espaços) na qual erotismo e a morte participam.

Para que servirá esta exposição de um verdadeiro caderno de dolências de flagelos morais e sadomasoquistas da raça humana, no mundo de hoje? Pode-se ainda questionar qual será a legitimidade e a adequação da obra de uma figura intelectual francesa polémica, conhecida pelo seu anti-semitismo e colaboradora, logicamente adepta de preceitos da extrema-direita e anti-comunista primária. Não teremos no nosso dia-a-dia guerras reais? Mortes gratuitas? Terrorismos pornográficos, acontecimentos amorais e imorais que nos cheguam em catadupa, nos média em particular, «à grande e à francesa»? Ao (re)ler Céline estaremos nós a participar de uma jouissance de terror, de um prazer mórbido e auto-destrutivo? Tornar-nos-emos nas criaturas que retrata?

A leitura desta obra “bomba-relógio” adverte para o inexorável fim contido no (auto)-terrorismo do Homem defininindo-se gratuitamente como negativo e abusivamente ingerente na vida de outrém sem reflectir sobre a nossa, querendo impor um qualquer saber aos outros sem ser requerido. Participa assim da globalização de um sistema egocêntrico e político cuja expansão precisa de ser travada e não alimentada. Ódios milenários e dificilmente explicáveis pela tão referida racionalidade humana (o anti-semitismo, o racismo, o não-respeito pela dignidade do ser humano masculino e feminino e as diferenças sociais e consumistas) encontram-se vivos nas grandes cidades devoradoras ou nas aldeias “rançosas” desta aldeia global (em Rancy, em África, na América, em Portugal e noutros países). Todavia, também nos permite reavaliar o nosso capital humano e individual. A viagem possibilita sair da concha e lançar um olhar crítico mas próximo, agressivo mas sensível sobre as pequenas histórias e a História.

Não houve, desde de 1932, um corte de luz planeado e certeiro que reduzisse a pó alguns destes ódios. Todavia, esta viagem ao fim da noite, conturbada e dolorosa, far-nos-á talvez sair deste círculo vicioso e nascer para outra dimensão, pois é humana a capacidade de produção do Bem. Fiat lux.

Por: Maria Manuela Tavares

Sobre o autor

Leave a Reply