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Vergílio Ferreira, entre a ficção e a realidade

Tresler

1. Há uns anos atrás o estruturalismo ensinava-nos que o importante eram as obras e que o sentido da literatura estava encerrado nos quatro vértices do retângulo de um livro. Tudo o que fosse para além da história e transpirasse para o “reconhecimento” de pessoas e lugares no mundo real era falsear e contaminar a obra literária. Em nome da pureza da literatura era pois necessário abominar as biografias (ou as memórias) de escritores e não degradar a sua mensagem com o cheiro dos lugares de berço do escritor e dos seus amigos e familiares. Entretanto, mau grado a importância daquela teoria, outras vieram que restabeleceram o lugar da biografia, da vida e dos lugares na génese e explicação da obra. Vem isto a propósito das atuais comemorações do centenário de Vergílio Ferreira (VF), em que vários eventos têm “traduzido” a obra de VF e nos têm conduzido a Melo, à Guarda (Penalva em “Estrela Polar”), a Gouveia (Castanheira na “Manhã Submersa”). E no caso deste escritor tudo bate certo: os nomes das ruas, mesmo sendo inventados, coincidem no seu desenho com as mesmas que hoje calcorreamos, as tias verdadeiras ganharam nomes diferentes nas obras mas não fugiram, a música, que ele aprendeu a apreciar pelo toque do violino, faz a sua aparição regular obra a obra.

Muitas vezes é como se o escritor estivesse a levar o leitor a imaginar naquele espaço “verdadeiro” a verdade da ficção. Ou a dizer que a realidade não desdenha da ficção e que em qualquer lugar podem acontecer as enormidades ou as maravilhas que a ficção inventa. E que o mundo é mais cruel do que a gente pensa e o género humano uma das espécies mais perigosas do planeta. Aliás ver a ficção contada no local verdadeiro diante do espaço facilmente reconhecível e por um bom contador/ enquadrador é uma ótima maneira de recriar e animar a leitura. Dito isto, converter a ficção numa tradução da realidade é o empobrecimento contrário, reduzindo e encolhendo. E aquilo que o leitor sonhou e ele próprio imaginou (construindo “as suas imagens”) pode tornar-se numa perfeita deceção perante o “ali naquele sítio” e, ao fazer cair na realidade, desfazer o encanto e a ilusão, obras da criação literária. Comparável a uma nostalgia de infância esmagada pela dura realidade de um regresso a um sítio descaracterizado.

2. Esta tendência de Vergílio Ferreira em dar pistas para que os seus lugares de ficção sejam “reconhecidos”, casa-se bem com a valorização que sempre deu à intervenção cívica do escritor e à narrativa e comentário das ocorrências da sua vida, nomeadamente no diário “Conta-Corrente”. Mas igualmente tem ligação à valorização dos géneros em que a pessoa se revela inteira para ser julgada pela posteridade. É o caso das cartas, das memórias, da biografia, do diário. A carta perdeu a sua importância, diz VF, por ser uma forma solitária de comunicar e hoje a cidade (“lugar de mais se estar em público”) e os ecrãs invadiram também aquilo que não é urbano, urbanizando-o. Do mesmo modo a carta funcionaria como um documento “que fixa de nós uma pessoa responsável”, todo o contrário de uma sociedade completamente irresponsável como aquela em que vivemos. Finalmente por ser marca de um tempo lento, o tempo da candeia de azeite ou do carro de bois (hoje peças de museu) e marca de esforço que mobilizava “o entendimento, a memória, a imaginação”. Tudo perdido. Mas as memórias e as cartas leem-se hoje, mesmo quando os autores são na ficção ou na poesia algo dececionantes, isto porque são “vida vivida” e é possível aí descobrirmos “o outro lado” da biografia oficial, não necessariamente com coscuvilhices mas com a dura experiência das relações, dos amores, dos ódios ou das convulsões. Elas podem ser mesmo a explicação involuntária (a “chave”) do mundo que o escritor criou nas suas obras.

3.E, se VF afinal aqui e ali foi apontando os canhões ao seu espaço natal, mesmo depois de aí ter regressado muitas vezes, ora na hora da intimidade familiar ora na consagração como escritor, na hora da morte preferiu ficar “para sempre” numa campa em Melo junto da sua “serra”. Quase parece que é a serra que lhe pede que ali fique a repousar o sono eterno e não tanto a sua aldeia. Esta para ele já não é a mesma que o viu nascer sem as pessoas que compunham as suas relações. Sente mesmo alguma estranheza e receio ao se encontrar face a gente que não “reconhece”. A montanha, tal como o mar, diz VF, é o contraponto da nossa pequenez, e especifica: «A montanha nasceu para o Inverno como o mar para o Verão. E entende-se mais com a noite como o mar com o dia». A excessiva grandeza, os ventos, a neve, entre a placidez e a aridez, é isto que esmaga cada um de nós junto ou no meio da montanha. Ele quis ali ficar.

(Melhor que o Vergílio Ferreira da ficção só o Vergílio Ferreira que nos põe a pensar, no diário ou nos pensamentos que reúne em “Pensar” e “Escrever”, obras em que a capacidade de síntese do autor chega ao mais puro refinamento. É isto que ando a ler.)

Por: Joaquim Igreja

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