Arquivo

Vamos brincar à liberdadezinha!

«O desejo intenso de liberdade, aliado ao medo da responsabilidade, tem como resultado a mentalidade fascista» – Escreveu Wilhelm Reich em “A Função do Orgasmo”.

Gajo Petrovic, em “Humanismo Socialista”, afirma: «A liberdade é a essência do homem, mas isto não quer dizer que o homem seja sempre e em toda a parte livre. O “medo à liberdade” (“escape from freedom”) encontra-se difundido no mundo contemporâneo. No entanto, tal facto não refuta a tese de que o homem é o ser da liberdade; confirma apenas que o homem contemporâneo se aliena da sua essência humana, do que ele como homem pode e deve ser».

A afirmação de W. Reich tem a apreciável virtude de conjugar a liberdade com a responsabilidade. Reich, tão incompreendido quanto perseguido, teve de expiar a repulsa pelas ideologias. Como pensador absolutamente antitotalitário, desprescindia da ligação intrínseca entre liberdade e responsabilidade, o que dificulta a mistificação paranoica dos que pretendem restringir, a todo o custo, a extensão significativa da palavra “liberdade”.

Partilhamos sólidas razões para reconhecer que a liberdade, constituindo a essência humana, tem estado sujeita a uma trama de restrições. Bem o sabemos. E será difícil rebatermos a afirmação universalizante segundo a qual o medo da liberdade constitui uma das características do “mundo contemporâneo”.

Já nos parece muito mais metafísica, quiçá desvirtuada e logicamente inexata, a afirmação de que o «homem contemporâneo se aliena da sua essência humana» – afirmação que, implicando um inexistente conhecimento dessa “essência”, terá de ser devidamente arquivada na arqueologia do saber.

Retenhamos do confronto o seguinte: 1) que o medo da liberdade, enquanto complexo subjacente às atitudes de cidadão e comunidade, é reconhecido como um obstáculo à emancipação do homem; 2) que desse medo enraizado no inconsciente individual e coletivo é uma esquiva à responsabilidade e só favorece aquilo que Reich chamou «a mentalidade fascista».

Nós talvez tenhamos vivido durante excessivo tempo no tal «desejo intenso de liberdade». E se o nosso «medo de responsabilidade» está na proporção direta desse desejo, facilmente se explica a grande cobardia que aos mais diversos níveis (mas todos mais ou menos privilegiados) tem atuado sobre a nossa vida.

«A liberdade é olhar em volta», dizia o jovem Jean Luc Godard (1959 sobre o filme o “Acossado”), acaba por encerrar uma visão aristotélica de um novo caminho de liberdade do cinema francês do dealbar dos anos 60.

«Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: Uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa nenhuma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre».

É com este belo parágrafo que Aristóteles começa a sua “Metafísica” e com ela inaugura, de certa maneira, os vícios do logocentrismo idealista que virão a marcar praticamente toda a evolução da cultura e da filosofia ocidentais até à rutura instaurada pela teoria das formações sociais e da sua história.

No esquema mental dominante, ou prevalecente, como é mais gostoso dizer-se, determinado por um sistema de linguagem em que a noção de “ver” é obviamente assimilada à de compreender.

Uma das lutas que desenvolvem os que amam a liberdade é contra a cobardagem. Há os que, a coberto de uma prudente tranquilidade, vão pontualmente delineando quotidianamente o apocalipse, cientes que em pouco tempo qualquer alteração do status quo se resolveria com um qualquer autoritarismo.

A cobardagem nunca está de facto do lado da indecisão e conhece de que lado está a força das armas, a única força capaz de “libertar” os medrosos da responsabilidade. Trata-se de obter a segurança mediante o usufruto de algo monocromático.

Estamos a raiar a fase em que o inconformismo não se pode exprimir e o açaime que nos vão impondo aumenta em todas as frentes.

Por: Fernando Pereira

Sobre o autor

Leave a Reply