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Vale o amor uma separação?

Tresler

“O amor não tem que ser verdadeiro. Tem de ser uma mentira de que nós sejamos capazes.”

(Tiago Taron in O que é o amor para ti?, org. Sofia Costa Quintas)

1. A percentagem elevadíssima de divórcios na sociedade portuguesa mete-se todos os dias connosco, pelos números impressionantes, pela proximidade connosco dos que a ele recorrem e pelos dramas que habitualmente este processo transporta. O divórcio como drama que é esconde sempre no entanto o lado positivo da libertação de outro drama e da partida para uma nova ilusão de felicidade, essencial à vida.

Aprender a amar e a viver com alguém é um processo que se inaugura num olhar e continua numa relação ou num contrato mas que, sendo um processo entre duas “pessoas”, tem todas as condições para poder estar sempre incompleto e dar origem à insatisfação diante das expectativas. Aos que defendem que antigamente o divórcio era raro e que os nossos pais eram felizes, responda-se que nem o divórcio existia nem o recurso à separação estava nos horizontes deles. Os problemas resolviam-se ou degeneravam com o tempo e com a aceitação das regras sociais e a acomodação ao sofrimento, que a religião favorecia. Nem a felicidade era um objetivo. Aliás os mitos de Romeu e Julieta e Tristão e Isolda, fundadores do nosso pensamento sobre o amor, testemunham que ao longo da História o amor esteve mesmo à margem do casamento e aí se devia manter. Os séculos XIX e XX são o momento de viragem na conceção do casamento como originário duma relação amorosa, com tudo o que isso pouco a pouco vai instilando de inovador.

2. Um conjunto de debates reunidos na obra “O que é o amor para ti?”, com organização de Sofia Costa Quintas, veio interpelar-me com temas à volta dos fundamentos do amor, da sua relação com a paixão, da instituição-casamento e das razões para o divórcio. Ultrapassar a fase da paixão e saber construir o amor na sua relação com o outro é um dos maiores desafios das nossas vidas. A paixão funciona quase sempre como um isco para a relação amorosa e como um desejo de fusão total mas esta fase tem que se esgotar para que alguma estabilidade impere. Muitas vezes nesta fase de paixão é mesmo uma relação de narcisismo puro o que encontramos, convertido o outro num espelho do que nós desejamos. A família é um novo espaço de convivialidade que surge, onde se avalia continuamente cada um dos intervenientes quando o amor e o sexo têm que conviver com a economia e a organização do núcleo familiar. Aceitar que esse é um espaço de aprendizagem e que nunca teremos o curso feito é uma das regras de base que muitos só aceitam da boca para fora. Mas a ideia de que, falhando, podemos partir para outra aventura, começou a entrar nos nossos quadros mentais. O que não evita que na maioria das vezes soe ainda a falhanço esta opção de separação. E em muitos casos o adiamento do divórcio deve-se apenas a este medo de mostrar à sociedade (ao registo civil primeiro e aos outros na fase a seguir) que supostamente somos perdedores neste jogo.

3. Uma das ideias mais interessantes que estes debates à volta do amor e das relações apresentam tem a ver com a ideia de solidão, a solidão construída e não a da angústia de estar só. E assim uma das conversas traz-nos a defesa de que o casamento não pode esmagar a nossa individualidade, que não pode ficar acantonada num desvão da instituição familiar e que deve ser reconhecida pelo outro. A construção do indivíduo, num século que continua a valorizar o nosso desenvolvimento pessoal como um dos sentidos da nossa vida, não pode ficar destruída pela omnipresença dos deveres familiares ou por uma certa conceção deles. Querer transformar o outro à nossa imagem nunca será bom conselheiro. O espaço de solidão será assim o espaço de uma unidade espiritual que nenhuma ligação ao outro deve poder destruir. Mas há também o lado inverso. Um casamento ou uma relação não sobrevive com qualidade mínima se não houver um mínimo de rituais comuns, de ordem afetiva, sexual e social. Alguns destes rituais têm de fazer ligação com o exterior e implicar compromissos no verdadeiro sentido da palavra: receber mas também dar, conviver a dois e com terceiros e ainda aceitar que o outro tem o seu espaço vital, uma solidão que tem direito a construir.

Por: Joaquim Igreja

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