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Vale a pena ler os nossos

Tresler

1. Sim, santos da casa não fazem milagres. Ou antes: não acreditamos nos milagres que eles fazem. Dos nossos próximos, quando mostram valor e pujança de espírito e capacidade de renovação, dizemos que há bem melhor ou que o lugar que têm não advém simplesmente do seu mérito. Aplicando-se isto a diversos ramos de atividade, na escrita isso destaca-se sobremaneira. Quantos guardenses leem livros locais ou conhecem autores daqui? Quantos arriscam conhecer um pouco mais da história local ou dos textos criativos dos nossos? Quantos guardam coleções inteiras da revista local de cultura sem nunca a ter aberto? Às vezes mais parece mal de inveja ou maledicência, tão típico nosso, do que falta de tempo.

E no entanto diríamos que, sendo em geral os livros sobre a nossa realidade mais acessíveis, mais simples, mais afetivos, carecemos de vontade de questionar interiormente o que nos é mais próximo. Outras vezes a realidade nacional é a floresta que esconde a árvore dourada onde encontramos sem dúvida pérolas inesperadas. Reconhecer ou ver algo familiar pintado de outra maneira é tantas vezes mais saboroso que conhecer de novo. Ser leitor plural é portanto ir intervalando os livros de afirmação nacional com os de proximidade e afirmação regional, explorando os livros locais para além da cerimónia do autógrafo após o a qual o livro se fecha e se guarda.

Pior é quando nos damos conta de vários fenómenos contra os quais podemos lutar muito pouco: a baixa de leitura generalizada, a menor capacidade de leitura dos atuais estudantes/ diplomados (e portanto uma maior taxa de desistência) e, do outro lado, uma oferta cada vez maior de conhecimento em artigos ou publicações. Eu sou daqueles que vou acumulando oportunidades de leitura que entretanto vou adiando. Pilhas de livros à espera de oportunidade na mesa ao lado da secretária, livros que são entretanto ultrapassados por outros mais chamativos que nos acenam inexoravelmente e o amargo de às vezes vermos aquisições postergadas para sabemos lá quando. A Bertrand envia no início de cada ano uma lista de cerca de 100 livros para votação nos melhores livros do ano anterior. E não é que no último ano desses 100 só consegui ler um? Desanimar não vale a pena – as opções são para se tomar e o tempo não estica. É caso para dizer, como Almada Negreiros: «Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido».

2.Um dos livros de autores da região que me seduziram nos últimos tempos foi “Rostos da Emigração”, de Joaquim Tenreira Martins, lançado na Guarda em 2017 pelo autor, natural de Vale de Espinho (Sabugal). O autor, ex-assistente social no consulado português de Bruxelas, lança luz sobre o fenómeno da emigração para a Europa Central, que a região da Guarda conhece bem. A imagem dominante da emigração portuguesa dos anos 50-70 do século passado continua a ser, para a maioria de nós, de uma vaga de “boa gente”, em geral analfabeta, que foi ganhar a vida submetendo-se ao pior, gente cordata e convivial, integrada e sem problemas nas comunidades estrangeiras. Este livro, que advém da atividade num consulado, mostra o outro lado desta realidade. Cá como lá, há integrados e desintegrados, respeitadores e delinquentes, pacíficos e crápulas. Todos nós já o sabíamos, até porque “eles” regressam e as suas histórias e artimanhas se descobrem: do outro lado da «emigração de sucesso» há a sombra de «vidas em tom menor». Destapar esse alçapão é um ato de generosidade de JTM, mostrando a realidade dos portugueses na Bélgica com delinquentes nas prisões, pedintes nas ruas, trafulhas a querer enganar meio mundo, situações de orfandade ou de violência doméstica.

O milagre é assim mostrar o que existe, mas com uma «profunda compreensão afetiva e com uma simpatia que não exclui ninguém». O ter munido os consulados de serviços sociais rompeu assim com um «passado de indiferença face aos nossos compatriotas», mostrando aquilo que era inevitável, a pura realidade. Quando se vive junto dos mais ricos não pode haver a tentação de querer progredir mais rápido? Quando o funcionamento social admite o aproveitamento e às vezes o premeia, queríamos que não houvesse excessos? Outras vezes são os brandos costumes dos que vão daqui que enganam quando chegamos a sociedades mais organizadas e exigentes, as da Europa mais desenvolvida.

Curiosa a afirmação de JTM sobre a exemplaridade destes casos em forma de recado a quem manda: «Todo o homem antes de chegar a um posto de comando deveria fazer um estágio num serviço social».

(“Rostos da Emigração”, de Joaquim Tenreira Martins, Orfeu, 2016)

Por: Joaquim Igreja

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