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Usura

Lembro-me ainda de dois cafés dos mais emblemáticos da Guarda, o Café Mondego e a Cristal. Fecharam há já muitos anos, depois de adquirido o trespasse por instituições bancárias. E não foi só na Guarda, que houve pelo país, pelo mundo fora, muitos cafés a dar lugar a agências bancárias.

Mudaram muitas práticas e muitos hábitos, conforme os bancos foram estendendo os seus tentáculos a muitos aspectos da nossa vida. Antigamente, as pessoas poupavam para poderem mais tarde comprar coisas. Se não podiam esperar, iam ao banco pedir um empréstimo. Era suposto que o iam pagar de volta e eram-lhes exigidas garantias de toda a ordem – quase tinham de provar não precisarem do dinheiro que pediam emprestado, como dizia uma velha piada do métier. Quando o crédito se tornou mais fácil e os bancos o começaram a oferecer em abundância, toda a gente começou a ter acesso imediato às coisas que antes eram uma miragem perdida no tempo. Já não eram necessários anos de sacrifícios para se poder ter tudo, o necessário e o supérfluo, o frigorífico ou as férias em Cancun: bastava um gerente bancário necessitado de cumprir rapidamente objectivos comerciais, como atingir o número de x empréstimos pessoais até ao fim do mês.

É verdade que a coisa começou por correr bem, que tanto dinheiro em circulação acabava por dinamizar a economia, por dar oportunidades de negócio às empresas, que os bancos emprestavam era para as empresas poderem vender. O problema é que, havendo tanto dinheiro a ser emprestado, havia cada vez mais pessoas a falhar o pagamento dos empréstimos. Os bancos, para se defenderem, iam aumentando as taxas de juro. Deste modo, os que pagavam compensavam as perdas provocadas pelos outros.

Falta no entanto assinalar um pormenor: é que para que isto fosse possível, foi necessário acabar com uma das mais antigas leis criadas pelo homem desde a invenção da escrita, existente já na antiga Babilónia – a proibição da usura. E foi assim que, já nos anos setenta do século passado, deixou de haver um tecto para os juros dos empréstimos bancários (e também em Portugal). E foi assim também que o negócio das instituições financeiras passou a ser rapidamente o mais lucrativo de todos os negócios do planeta (à excepção possivelmente do tráfico de droga). Chegou-se ao ponto de as empresas produzirem bens e obterem lucro do crédito concedido ao cliente para a sua aquisição. Como me dizia um vendedor de carros, se me vendesse a pronto a sua comissão seria menor. Chegou-se a um ponto, como assinala Thomas Geoghegan na última Harper´s, que a própria General Motors se converteu numa instituição financeira e agora, no fundo, vende carros como pretexto para conceder empréstimos. A riqueza, diz Geoghegan, foi assim passando aos poucos da indústria para a banca e com os resultados que começamos agora a perceber.

Aqui chegados, perante uma crise económica e financeira global gigantesca, provocada pelos bancos, havia que repensar algumas coisas. Porque não repor um tecto para os juros bancários, repristinando a velha proibição da usura e, já agora, equiparar os impostos sobre os lucros do sector financeiro aos das restantes empresas (nem que fosse necessário acabar primeiro com as offshores)? Seriam boas ideias, mas há demasiados governantes a sonhar com um lugar na administração de um banco.

Por: António Ferreira

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