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Letra A

Em Março de 2004, a editora Antígona publicou “”O Único e a sua Propriedade”, de Max Stirner, Trata-se da sua primeira edição nacional, com tradução de João Barrento e posfácio de Bragança de Miranda, justamente intitulado” Stirner, o passageiro clandestino da história”.

Em 1841, Stirner havia aderido ao Die Freien (os livres) um grupo de jovens hegelianos de esquerda, que tinha como figuras de proa Ludwig Feuerbach e Bruno Bauer A ideia base que os unia era a crença de que a dialéctica implicava que a História percorreu duas épocas absolutamente distintas: o materialismo intuitivo dos antigos (o mundo das coisas) e o mundo do espírito, próprio do cristianismo, cabendo encontrar uma nova síntese. Feuerbach afirmou que a reverência que temos por Deus é antes pelo género humano, isto é, “a essência do homem é o ser supremo do homem”, ao que Stirner responde que o é, “precisamente por ser a sua essência, e não ele próprio”, sendo indiferente “ver a essência em mim ou fora de mim”. Para Stirner, o cristianismo situou sempre o ser supremo num duplo além, o interior e o exterior, sendo que o “espírito de Deus” é, ao mesmo tempo, “o nosso espírito” e “mora em nós”. Então “nós, coitados, somos apenas a sua “morada” e quando Feuerbach destrói a morada divina do espírito e o obriga a mudar-se de armas e bagagens cá para baixo, nós, a sua morada terrena, vamos ficar muito superlotados”. Para depois concluir que, afinal, “Os nossos ateus são pessoas devotas”.

“A minha causa é a causa de nada”, é a expressão com que Stirner anuncia o seu programa, para depois acrescentar “Há tanta coisa a querer ser a minha causa! A começar pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade, do humanitarismo, da justiça, do meu povo, da minha pátria, a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo!” Significará este auto-declarado egoísmo um bluff para espantar os incautos, um solipsismo ingénuo? Não, é a afirmação da soberania absoluta da singularidade de cada indivíduo, do único, contra todas as formas de dominação, incluindo a Revolução, o “Homem” e o Direito. A começar pela fascinação, pela obsessão que os indivíduos sentem pelos espectros, as formas mais insidiosas de revelação do tal espírito. Que a dialéctica hegeliana desembocou numa servidão ainda mais tirânica: o materialismo histórico e a sociedade perfeita no seu termo, segundo Marx.

Quando o livro saiu, em 1844, foi como uma bomba de efeito retardado. Os censores bem hesitaram em conceder o imprimatur, por fim autorizado porque “demasiado absurdo para ser perigoso”. Logo após a sua publicação, Marx encarou Stirner como um alvo a abater, tendo escrito uma crítica demolidora, por sinal mais extensa do que o livro, e que permaneceu inédita até à sua morte: “São Max”. O “estranho individualismo” de Stirner foi abundantemente citado e absorvido por gerações de estudiosos e artistas, mas raramente entendido na sua profética genialidade e quase sempre recalcado como um passageiro clandestino do pensamento. É que o tempo dele ainda mal começou.

Por: António Godinho

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