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Umas Letrinhas Apenas

Acabo de receber de um dos meus muitos amigos na Net, uma proposta de subscrição da última petição online. Esta, tem como objectivo declarado a defesa da Língua Portuguesa. Quem quiser subscrever, pode ir a http://www.ipetitions.com/petition/manifestolinguaportuguesa/index-1.html e juntar o seu nome a uma longa e ilustre lista de pessoas que se opõem ao Acordo Ortográfico.

Confesso desde já que, mesmo que o acordo me irrite e me pareça mais uma inútil imbecilidade, me recusei a subscrever a petição. Não é que tenha vergonha da companhia. Entre os primeiros subscritores temos, por exemplo, António Lobo Xavier, Eduardo Lourenço, José Pacheco Pereira, Miguel Veiga, Vasco Graça Moura e Vitorino Magalhães Godinho.

O problema é o texto do manifesto. Começa assim: “O uso oral e escrito da língua portuguesa degradou-se a um ponto de aviltamento inaceitável, porque fere irremediavelmente a nossa identidade multissecular e o riquíssimo legado civilizacional e histórico que recebemos e nos cumpre transmitir aos vindouros”. Depois do “porque” (conjunção indicativa de causa), temos a consequência. Esta é fácil de identificar (a lesão do legado histórico e civilizacional) – é pomposo, exagerado, possivelmente incorrecto, mas está lá. Agora, qual é mesmo a causa dessa lesão? o uso oral e escrito, a degradação do uso oral e escrito ou o aviltamento do uso oral e escrito? Devemos ler, como o nosso instinto parece forçar “degradou-se … porque fere”? Lendo outra vez, e tentando interpretar o que o autor do texto quis dizer, há que identificar três ideias base: há uma degradação actual da língua portuguesa (primeira ideia), essa degradação lesa o legado que essa língua representa (segunda ideia), legado que recebemos e temos a obrigação de transmitir (terceira ideia). As ideias não estão necessariamente mal, embora a primeira merecesse um pouco mais de demonstração. O problema é que a resistência que aquele “porque” provoca à leitura do resto do texto, e a forma como desequilibra a associação das três ideias, o torna na prática ilegível. E era tão fácil eliminar essa resistência. Bastava, em lugar de “porque”, escrever “o que”.

Dirão alguns leitores mais atrevidos que esta questão “não vale um cu”. Têm razão. O que me leva à palavra “arse”, do inglês europeu, equivalente ao “ass” do inglês norte-americano, como em “kiss my ass”. Duas palavrinhas, separadas pelo oceano Atlântico e que, ambas traduzidas, significam (mais ou menos) o mesmo: cu. Esta última palavra pronuncia-se e escreve-se da mesma forma dos dois lados do Atlântico, em todos os países lusófonos. Estes acham mesmo assim que precisam de um acordo ortográfico e os outros, os anglófonos, apesar desta e de muitas outras e significativas diferenças, acham que não.

Por: António Ferreira

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