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Uma Máquina de Passar Vidro Colorido

Opinião – Ovo de Colombo

“Sou um homem/Um poeta/Uma máquina de passar vidro colorido”, diz Paulo Reis sobre o ecrã branco. Seguem-se mais alguns versos do poema “Autografia”. O filme que assim começa tem o mesmo título e é o retrato cinematográfico de Mário Cesariny assinado por Miguel Gonçalves Mendes. As palavras regressam no fim, sobre a mesma imagem branca sem inscrições nem presenças. Desta vez são ditas por Cesariny e o silêncio inicial é substituído pelo som de um batimento cardíaco. Este coração bate depois da morte irromper na janela que o poeta fecha e nos quadros que deixam a sua casa vazia. A voz e a respiração do poeta mostram como estas são palavras vividas. A voz de Reis reaparece e o poema é dito a duas vozes, primeiro de forma coincidente (“condenado à morte!”) e depois intercalada. O sangue continuará a circular pela sua poesia sempre que ela seja dita.

Autografia (2004) divide-se em três actos comunicantes, com significativas diferenças de estilo, mais solto no primeiro, mais composto no segundo, combinatório no terceiro, como se fosse um poema em forma de filme ou um filme em forma de poema. É uma obra alimentada pela vida e paixão de Cesariny: os poemas urgentes, os objectos inesperados, os reflexos deformados, o humor negro, a ternura das irmãs, a memória doce da mãe e amarga do pai, a beleza do universo marinheiro, a carnalidade do desejo, a turbulência e tristeza do amor, a Lisboa mágica, o Portugal sempre adiado. O seu modo de sentir e pensar emana da revolução surrealista, entretanto perdida no tempo, que Cesariny iguala apenas à Revolução de Outubro — numa conversa ao espelho onde cabem André Breton, Arthur Rimbaud e Karl Marx. Um exemplo é o registo e a exposição do poema “Invictus” de William Ernest Henley que Timothy McVeigh, o bombista de Oklahoma, escolheu como declaração final antes de ser executado: “Sou o mestre do meu destino/Sou o capitão da minha alma”.

Cesariny confessa que nunca procurou que gostassem dele, mas que se o deixassem gostar de outro já bastava. “O mundo sou eu”, insiste ele. Não se trata de uma manifestação egocêntrica ou solipsista, mas da afirmação de um artista, de alguém que encontra as contradições e os esplendores do mundo nele próprio. Autografia mergulha nos sentimentos e pensamentos de um homem, deixando que isso tome conta do filme. As “saudades de voar” do poeta são encadeadas com vistas áreas de Lisboa — e a cidade aparece como outra, re-vista, re-imaginada. O seu corpo, onde escorregam gotas de suor e são projectadas imagens, é uma máquina apaixonada iluminada com cores quentes e frias, transparente como o vidro. Só os mais distraídos ficarão admirados quando ele afirma que há muito tempo não estava cá.

Sérgio Dias Branco*

* Coordenador de Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra

**O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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