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Uma insólita situação

Razão e Região

O insólito é este: Portugal pede ajuda à União, ao BCE e ao FMI e se, por um lado, montes de comentadores portugueses, com uma curiosa sobranceria, exorcizam a ajuda, como se fosse Portugal a fazer o favor ao «triunvirato», para usar a expressão de Paulo Portas, por outro, a esquerda radical não quer saber da ajuda para nada e quer mandar a “troika” embora, não lhe importando como se resolveria o problema das dívidas que, entretanto, temos de ir pagando aos nossos credores. Eu reconhecer-lhes-ia toda a legitimidade de apontarem o dedo a quem geriu o País durante esta dura crise internacional se reconhecessem que não havia alternativa a este pedido de ajuda. Assim, limito-me, mais uma vez, a constatar o ideologismo cego que os continua a animar. Mas insólita também é a duplicação de programas que os partidos do arco governativo estão a fazer durante esta campanha eleitoral. Duplicação, porquê? Simplesmente porque ao verdadeiro programa que os três subscreveram – o «Memorando de Entendimento» – estão a juntar outros Programas que os distingam entre eles. Digamos que estes partidos estão a funcionar por inércia: como seria possível, de outro modo, apresentarem-se a eleições sem um programa próprio? Até porque o verdadeiro programa está escrito num «inglês» que a maior parte dos portugueses não entende! Bem sei o que estes partidos dizem: não se trata bem de programas, mas de aprofundamentos do «Memorando de Entendimento»! Ora, acontece que, na boa tradição liberal da democracia representativa, o que está sempre em causa nas eleições legislativas é mais a eleição de representantes do que a aprovação de programas. Sim, porque caso contrário, deveria haver sempre a possibilidade de revogar a qualquer momento o mandato dos representantes quando estes não estivessem a executar o programa aprovado! Mas acontece que não é assim: os mandatos, em democracia representativa, não são revogáveis. E isto precisamente porque o que os cidadãos elegem é os representantes e não os programas. Certo. Mas, mesmo assim, não é por isso que os programas deixam de ser importantes, tal como o conjunto de princípios e valores que cada um exibe ou como a imagem de credibilidade com que cada um se apresenta ao eleitor: «Read my lips: no new taxes!», disse George Bush/Pai aos eleitores. Ou seja, a decisão eleitoral é composta por três variáveis essenciais: os princípios/valores, os programas e os rostos dos candidatos. No nosso caso, que mal haveria se três partidos abdicassem de propor a variável programa, uma vez que ela, neste caso, lhes é comum? Eu creio que seria suficiente propor o conjunto de princípios próprios da visão do mundo de cada um, acrescentando-lhes os rostos dos candidatos, a começar pelos rostos dos líderes. E o cidadão eleitor escolheria, não com base em três variáveis, mas sim com base em duas: os princípios e a imagem dos candidatos. Claro, BE e PCP/Verdes, não se reconhecendo no «Memorando de Entendimento», manteriam intacta a proposta tripartida e apresentariam ao eleitor os seus princípios, programas e rostos. Assim, o sistema sempre poderia exibir uma válvula de escape!

Estas minhas observações poderão parecer a alguns irónicas ou mesmo estranhas. Ou até desalinhadas. Mas não, porque, afinal, partem de uma constatação muito simples: o programa negociado com o triunvirato é um programa bastante completo, equilibrado e até contém medidas de fundo capazes de dar resposta a muitos problemas estruturais que afectam o nosso sistema político e social. E porque recolhe um consenso muito amplo que se espera não seja meramente conjuntural e táctico, já que nele se joga o futuro do nosso país. Dirão outros que se assim fosse estaríamos perante uma campanha eleitoral verdadeiramente anómala. Bem pelo contrário: se é certo que não faltaria um programa de governo aos partidos do arco governativo, também é certo que as duas variáveis dos «valores/princípios» e da «credibilidade» são absolutamente decisivas para a decisão político-eleitoral, em democracia. Quem governará melhor e com que princípios? Em que rosto posso confiar mais? Assim procedendo, eu creio que a democracia não ficaria diminuída, ressalvando, claro, a excepcionalidade do facto de o programa de governo ter sido negociado com entidades internacionais nas circunstâncias que todos conhecemos. E se esta é, em todo o caso, uma circunstância anómala na vida da nossa jovem democracia, pelo menos assim conseguiu-se um amplo compromisso que poderá ajudar a resolver alguns graves problemas estruturais do nosso sistema. Assim haja boa vontade de honrar o compromisso assumido.

Por: João de Almeida Santos

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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