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Uma exposição de Amadeo de Souza-Cardoso

Quando se entra no piso superior da exposição dedicada a Souza-Cardoso o que, desde logo, nos recebe é o próprio pintor (em fotografia, claro); e o que a fotografia nos diz é que se trata de uma grande personalidade, que ouvia muito bem e tinha boa sociabilidade, extremamente perspicaz, cuja confiança em si próprio vive como um pressuposto. O seu era um olhar de “escorpião” (signo astrológico, 14-XI). Era claramente um jovem (segunda juventude).

A grande personalidade que o “escorpião” sempre é tinha que deixar-nos (aqui confirma-se) uma obra vastíssima (também Picasso era “escorpião” e nos deixou uma obra vastíssima). Todavia, a manifesta juventude do autor e – com toda a verosimilhança – o facto de pertencer a um signo de água (os signos de água reflectem o ambiente) obstaram à originalidade. Aceitemos que o conseguiria; mas a sua morte, aos 31 anos (Manhufe, Amarante, 1887-1918) não a propiciou.

Essa prodigiosa energia que é o dinheiro permitiu-lhe ir para Paris aos 19 anos, onde viveu a boémia de Montparnasse, se formou como pintor e fez contactos com alguns dos nomes maiores do seu tempo. Mais. Não obstante a sua juventude relacionou-se com nomes cimeiros, nomes que ficaram, para sempre, nas antologias da História da Arte. Anglada Camarasa, Archipenko, Brancusi, Juan Gris, Boccioni, Severini, Roberto e Sónia Delaunay e – sobretudo – Amadeo Modigliani são apenas alguns.

E o reconhecimento e a consideração que obteve provam-se facilmente: expôs no Salão dos Independentes, em Paris, em 1911 e 1912; no primeiro Salão de Outono de Berlim, organizado por Der Sturm, em 1913; e no Armory Show, em Nova Iorque, Chicago e Boston, em 1913.

Com a eclosão da 1.ª conflagração regressou à Pátria e, ao ter encontrado, na Catalunha, os Delaunay, Roberto e Sónia, trouxe-os com ele para Portugal. Sónia diria mais tarde que os seis anos vividos em Portugal foram dos mais felizes da sua vida. Quando o leitor for à bela Vila do Conde procure os passos do casal. Aliás, a idiossincrasia e alegria do Minho foram para as telas dos Delaunay (no Thyssen-Bornemisza, em Madrid, procure A Grande Portuguesa), também influenciados por Amadeo; o casal, por sua vez, influenciou este.

Há precisamente oito anos a conspícua Fundação Juan March (Madrid) expôs dezenas de obras do amarantino, onde o vi pela primeira vez, mas a exposição que a olímpica Gulbenkian nos acaba de regalar é uma exaustão que merecia dias de visita.

Quando os impressionistas surgiram, as suas exposições suscitaram desde zombaria a dor muito intensa nos críticos de arte. A reacção do crítico Albert Wolff à 2.ª levou-o a falar de «um assustador espectáculo de vaidade humana que divaga até à demência» (“Le Figaro”, 3-IV-1876). O que estes críticos estavam nos antípodas de imaginar é que os primeiros anos do transacto século seriam tempos de vanguardas diversas, que vão da iconoclastia feroz a um radical corte com tudo o que vinha desde o Renascimento, da substituição da emoção pela razão (na feitura e apreciação da obra de arte) à afirmação do primado da intuição (Einfühlung) para apreender a obra de arte. É o que explica que, em entrevista a “O Dia” (4-XII-1916), Amadeo tenha declarado: «Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade».

O amarantino não a conseguiu. Mais. Numa obra é, simultaneamente, expressionista, cubista e futurista (… os signos de água…; também a juventude). Não é nenhum desprimor. É um dos grandes do seu tempo e uma glória nacional. Sim, porque português é que sempre afirmou ser. A alegria dos seus vermelhos e a força dos seus verdes, fossem ou não dos vales de Amarante, são portugueses e de mais ninguém – como o dizia uma atenta e jovem espanhola quando, em 2000, na Fundação Juan March, óbvia, fatalmente, concluía que… «pero és portugués».

A Maria Helena Vieira da Silva que, na década de 50, o reabilitou artisticamente, tanto em Portugal como internacionalmente, a nossa perene gratidão.

Guarda, 28-I-07

Por: J. A. Alves Ambrósio

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