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Uma Europa de sono pesado

A Europa vive um tempo muito próprio. Um tempo de tal forma demorado que, por vezes, a União Europeia aparenta ainda viver na época de Gutenberg.

A recente tragédia no Canal da Sicília, que terá resultado em cerca de 900 mortos, mostra isso mesmo. Mas o problema causado pelos fluxos migratórios provenientes de África e do Médio Oriente, tendo a Europa com destino, não é novo. Como também não é novidade que o acesso a solo europeu se faz, essencialmente, por via marítima e através do Mediterrâneo Central.

Itália é o país mais prejudicado. Por isso foi obrigada a adotar um programa de patrulhamento e vigilância designado de “Mare Nostrum” (uma alusão ao nome dado pelos romanos ao Mediterrâneo), na sequência do naufrágio que, em outubro de 2013, causou 366 mortes de migrantes que tentavam aceder à Europa através da pequena ilha italiana de Lampedusa.

Um ano depois, em outubro de 2014, o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi tentou recolher apoios junto dos seus parceiros europeus e também das Nações Unidas para evitar que o Mediterrâneo se transformasse num “cemitério de desaparecidos”. O programa Mare Nostrum representava um custo mensal de quase 10 milhões de euros e foi totalmente custeado pela Itália.

Quando em outubro último foi substituído pelo programa “Triton”, com um custo mensal inferior a 3 milhões de euros e uma abrangência de somente até 48 km da costa transalpina, surgiram imediatamente organizações e especialistas a assegurar que o drama do Mediterrâneo iria agravar-se. Bruxelas fez ouvidos moucos. Depois de em 2014 terem sido registadas 3.279 mortes, em 2015 o número já deverá ter ultrapassado as 1.600.

Tal como no caso grego, esta Europa desunida em vontade e apenas aproximada pelo egoísmo autista dos seus líderes, reagiu tarde e só quando as consequências se agravaram. Então, a Grécia foi deixada à mercê dos mercados. Bruxelas agiu quando a crise financeira grega já se transformara num vírus que ameaçava implodir a Europa. A ameaça permanece viva.

Novamente tarde e porque a tragédia atingiu proporções tais a que ninguém poderia ficar indiferente, ainda na segunda-feira, Bruxelas anunciou o reforço dos programas de vigilância e socorro no Mediterrâneo para valores ainda assim abaixo do custo mensal do Mare Nostrum.

Percebe-se, uma vez mais, que a receita não será suficiente. Foi também, insolitamente, anunciado o “acordo ainda informal para promover um Governo de unidade nacional na Líbia”. País que depois da intervenção militar aérea liderada pela França e Reino Unido que, em 2011, derrubou Kadhafi com o vento favorável da Primavera Árabe, virou ceara para foice terrorista. Com a Europa inerte.

A intenção europeia é a de promover um Governo num país órfão de instituições e cujo poder mais efetivo no terreno é o dos jihadistas sunitas do autoproclamado Estado Islâmico. A Europa mostra outra vez que o tempo da ação é tardio – depois de quatro anos de erosão estatal na Líbia – e que o modo pode ser uma de duas coisas apenas: irrealista ou meramente estúpido.

Por: David Santiago

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