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Uma estátua no meio da Praça

As memórias nunca são revolucionárias, por muito que lhes mudemos a narrativa, hão de sempre puxar-nos para o passado. Esse mesmo passado que, quando era ainda presente, nem sempre nos agradava como hoje o queremos recordar.

A minha avó costumava referir-se ao largo em frente à Igreja da Misericórdia, como o “Terreiro dos Ovos”. Essa simples denominação tinha o dom de me transportar para um espaço com mulheres sentadas atrás de uma cesta de ovos. Algumas das vezes, cheguei mesmo a visionar a minha avó a negociar o preço, tamanho e cor dos ditos e divagava até ao ponto em que eram as próprias galinhas, ali e no momento, a dispensar os ovos de acordo com a sua vontade.

Nem sequer sei se ali se venderam ovos e desconheço a razão de tal toponímia que pode bem advir de um episódio em que alguém por ali tenha andado a atirar ovos a quem passava. Assim ao nosso jeito de atirar bolas de neve a quem passava entre o Jardim “Pequeno” e a esquadra da polícia. Certo é que relaciono aquele largo com vivências que só existiram na minha imaginação.

Isto, a propósito de quê? Pois bem, a propósito das petições que um sem número de guardenses e outros tantos – que quase o são por via de por cá terem vivido uns tempos – têm promovido para reverter a modificação de alguns dos lugares, para eles, mais emblemáticos da própria memória que da cidade.

Chega a ser enternecedor o contributo que cada subscritor que já cá não vive quer dar a petições como “queremos o Sancho no centro da Praça Velha”. Em vez de argumentos estéticos, ou funcionais, dão-nos com memórias transvazadas, quais devotos de um Sancho no meio da Praça. Como a querer fixar afetos próprios em recordações que, acredito, sejam mais romanceadas que nítidas. Enternecedor mas, quanto a mim, contraproducente ao desviar o foco do que realmente é crucial, para não cairmos neste marasmo da troca de bibelots e pensar que cidade se quer. Uma cidade Aberta e propensa à deriva, ou cheia de barreiras e cantos esconsos?

Cedo em concordar que o lugar para onde remeteram D. Sancho não seja o mais digno. Contudo, talvez haja outras alternativas, não equacionadas por se escolher ficar num sítio que há muito desapareceu: o centro da Praça “Velha” enquanto coração da rotina citadina. Já para não perguntar como se organizariam os eventos, popularmente, muito acarinhados, que ali decorrem. Num cenário de brincadeira, pode-se sempre recorrer a um sistema rolante no pedestal da estátua e mover-se de acordo com as circunstâncias. No mundo adulto, se calhar será mais sensato decidir primeiro a maneira como queremos vivenciar a Praça e pensar depois na disposição da estátua. Entretanto, podemos sempre ir resolvendo o caso das ruínas, mal dissimuladas, em frente à porta principal da Sé, redesenhar traços identitários da morfologia urbana e arejar, à séria, este átrio atlântico da Europa.

Aqui chegada, dou por mim a pensar na sorte que tenho em nunca ter conhecido o “Terreiro dos Ovos” e, por isso, não me ocorrer a promoção de qualquer movimento cívico com intenção de o reaver. Agora que me constituo, sem mais, primeira subscritora de uma petição que apele à troca da locomotiva velha na rotunda pela retirada de todo o entulho que está à venda nas ruas circundantes à Sé. Isso sim! Até porque renovar passará mais por fazer coisas diferentes, à nossa maneira, do que por fazer, continuamente, as mesmas coisas, ainda que de outro modo diferente.

Por: Fidélia Pissarra

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