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Uma escola aberta quase 24 horas por dia

Filhos de trabalhadores das fábricas da região ficam na instituição educativa em Videmonte, por vezes, até à meia-noite

Chegam aos pares, ensonados, com o pijama vestido, cobertos por uma manta, trazidos ao colo pelas mães. Ainda o sol não nasceu e algumas dezenas de crianças já estão a caminho da escola, em Videmonte, na zona serrana do concelho da Guarda. A maioria só vai regressar a casa por volta da meia-noite devido aos turnos das fábricas têxteis e de componentes automóveis das redondezas. É assim todos os dias numa aldeia onde pais e filhos têm vidas trocadas.

«Já é uma espécie de ritual», explica Isabel Carvalho, mãe do Rodrigo, de cinco anos. Trouxe o filho às seis da manhã e às 15 horas virá buscá-lo, levando de novo a mantinha para casa, porque «amanhã é outro dia», diz a operária de uma fábrica têxtil dos Trinta, a dezena e meio de quilómetros de Videmonte. Mas na próxima semana o horário é outro e virá trazê-lo às 14h30 para o levar de regresso às 24 horas. «É conforme os meus turnos no trabalho», acrescenta, uma rotatividade que também norteia a vida da maioria das mães que se socorrem dos serviços de creche, jardim-de-infância e escola da Comissão de Melhoramentos da localidade. E o pequeno Rodrigo já sabe que na próxima semana só sairá da escola à meia-noite, de pijama vestido e no aconchego da mãe. O miúdo, como tantos outros, acaba por passar quase todo o dia ali, pois «tem o jardim-de-infância de manhã e, mesmo quando o meu turno é de tarde, acaba por vir sempre mais cedo», explica Isabel, que «dá graças a Deus» por ter uma estrutura como esta em Videmonte. «Senão não teríamos onde deixar as nossas crianças», garante, confidenciado mesmo que «esta é a segunda casa do meu filho».

Céu Mendes, mãe da Catarina, de seis anos, comunga da mesma opinião: «Não há nenhuma instituição como esta», pois está sempre disponível para responder às necessidades dos pais. «Sem ela, a nossa vida profissional seria mais complicada», assegura Céu Mendes, empregada no Lar de Videmonte, que destaca a «qualidade e comodidade que oferece», para além de que a instituição «é uma regalia» para a aldeia. «Gosto muito de estar aqui», diz, timidamente, Diana Fonseca, de 9 anos, que frequenta a associação há dois nos turnos rotativos. «É muito melhor estar aqui do que em casa sozinha. Por isso, quando saio da escola primária, que é ao lado, venho para aqui fazer os trabalhos de casa. Depois lancho, e fico a brincar até à hora do jantar», conta a menina, cuja mãe virá desta vez buscá-la depois à meia-noite. Cláudia Brazete é a utente mais antiga da casa, tem dez anos, os mesmos que está na instituição. Ainda está na 4ª classe, «mas já podia estar no 5º ano», faz questão de anunciar. Entretanto, vai estudando e brincando por ali mesmo. Frequenta aquele espaço desde os quatro meses, por isso até já é vista como uma veterana entre as amigas. «Mas este vai ser o último ano que aqui vou estar», garante orgulhosamente. À semelhança dos colegas, os pais da Cláudia também trabalham nas fábricas da zona e já a irmã frequentou esta instituição.

Um exemplo a seguir por outras instituições

«A maioria das crianças passam o dia inteiro fora de casa», explica Filipa Morais, educadora de infância há quatro anos naquela Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS). «Para alguns miúdos esta é a primeira casa deles», pois só vão dormir à sua verdadeira e, por vezes, «alguns nem querem ir, sentem-se bem aqui», diz a educadora, satisfeita. Para manter as crianças ocupadas durante mais de 12 horas por dia, as funcionárias tentam planear diariamente actividades diferentes «para que não se saturem», refere Filipa Morais, uma fórmula milagrosa que nem sempre é fácil de conseguir. Isto porque a instituição engloba a creche, o jardim-de-infância e a escola primária, ou seja, crianças com uma faixa etária entre os 4 meses e os 10 anos: «Como são idades diferentes, as actividades têm que ser muito bem projectadas», refere a educadora. Mas todos garantem que a creche vai de encontro às necessidades dos pais, «às vezes até facilitamos demais, mas temos que ter a capacidade de nos adaptarmos a uma realidade diferente», admite a educadora. É que cerca de 90 por cento dos pais trabalham no sector fabril da região, nos Trinta ou na Guarda, para além da actividade agrícola que todos praticam.

Agora como é a época das castanhas, muitos pais regressam do trabalho e ainda vão para as lides do campo, «por isso tem que haver uma grande flexibilidade nos horários da escola», diz. Os restantes dez por cento trabalham no Lar de Videmonte (que pertence à mesma instituição), na construção civil e na Guarda Nacional Republicana. Segundo o horário estipulado à entrada, a instituição funciona das 6 horas até às 24 horas. Assim, nos chamados turnos normais, as crianças entram às 7h30 e saem às 17h, enquanto os turnos rotativos são das 6h às 15h30 e das 14h30 às 24 horas. Ao todo são cinquenta crianças, das quais vinte pertencem ao turno rotativo. Como educadora, Filipa Morais considera que os pais deviam passar mais tempo com os filhos, apesar de compreender que «a vida nem sempre permite essas comodidades». No entanto, nota-se que «há uma maior tendência para que as mães troquem de turnos», desde que a entidade patronal o permita, para evitar os horários nocturnos, reconhece. O actual presidente da Comissão de Melhoramentos de Videmonte, Fernando Caldeira, sente-se lisonjeado pelo trabalho desenvolvido porque «tudo isto só é possível graças ao esforço dos antecessores, que iniciaram esta comissão em 1991».

A actual direcção já realizou algumas obras de beneficiação no interior da estrutura escolar «para tornar o espaço mais acolhedor e cómodo», indica Fernando Caldeira. O próximo passo será o exterior do edifício, que «já não dá resposta às necessidades das crianças». Mas o presidente não tem dúvidas quanto à importância desta estrutura educativa: «Se não houvesse este espaço muitas mães teriam que ficar em casa para tomar conta dos seus filhos», garante. De resto, esta IPSS sobrevive com os apoios da Segurança Social e com uma mensalidade de 45 euros paga pelos pais, que inclui três refeições diárias. No concelho da Guarda só há outra estrutura do género, localizada nos Trinta, por causa da mesma realidade laboral. «Este devia ser um exemplo a seguir», conclui Fernando Caldeira.

Patrícia Correia

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