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Uma breve história da crise

Quando, dentro de cinquenta anos, for possível fazer uma história desta crise europeia, apontará ela para o início do fim da União Europeia como a conhecemos, para a descomunitarização das políticas e recuperação da soberania nacional, ou para o fim irremediável da soberania que ainda resta, numa nova União mais federal e integrada, dotada de governo económico e fiscal? As crises são sempre momentos definidores, em que as circunstâncias mudam e, por via destas, mudam também as percepções e as regras que regulam as sociedades. Mais uma vez, os desatentos só o podem ser à sua própria custa, e quanto mais profunda a crise maior a urgência de perceber a mudança das circunstâncias.

Se é injusto atribuir a crise à existência da Europa política, não é menos verdade que, com esta crise, ruiu a crença básica em que tem assentado a vida e a confiança dos europeus nas últimas décadas, a saber, que a Europa política é um escudo protector natural contra as crises financeiras que assolam o resto do mundo. E ruiu a crença, sobretudo para as periferias mediterrânicas e do leste, de que a Europa é a garantia natural do aumento contínuo do nível de vida, a simples condição de se ser rico, desenvolvido e com mais recursos do que projectos para aplicar. Num recente artigo do Público, Vasco Pulido Valente (VPV) reagia violentamente ao ruir desta crença afirmando que, após vinte anos de fotos de família, a única verdade é que a Europa nunca existiu; existem as grandes potências e as outras, periféricas, sujas e gastadoras, que as primeiras toleram e disciplinam a contra-gosto para evitar males maiores. E o mais grave, conclui VPV, é que os dirigentes que temos lhes dão razão.

Em boa verdade, a história moderna da Europa resume-se a isso, inovação, produção e exportação a partir da Europa do Noroeste; importação, gasto, endividamento e estagnação das periferias do Mediterrâneo e do Leste, uma relação directa entre os dois fenómenos que Andrew Janos demonstra claramente nas suas teses. Não é de admirar que o acrónimo PIGS tenha obtido tanto reconhecimento num momento de crise, com a História a relembrar o que é o fenómeno cíclico das dificuldades que passa quem gasta mais do que produz. E a Europa vale a pouco, nestas circunstâncias. Vale pouco e pode até ter sido o catalisador das presentes dificuldades, designadamente em Portugal. A integração nas Comunidades Europeias foi tida como o grande desígnio nacional e à sombra dele foi destruída a capacidade produtiva do país. A ânsia por entrar levou a aceitar as condições injustas da Política Agrícola Comum (PAC), engendrada para beneficiar os agricultores da Europa do Noroeste (franceses, alemães e holandeses), a destruir a frota pesqueira, a receber subsídios para não produzir, a empobrecer e desertificar o país. Ao invés, as periferias foram instigadas a abrir as fronteiras, a consumir tudo o que viesse de fora (as máquinas alemãs, por exemplo) e a endividar-se se o dinheiro não chegasse. E quem comprou a dívida portuguesa, espanhola e grega? Os bancos franceses e alemães, os mesmos que se alarmam com a possibilidade de default das periferias e que exigem a Sarkozy e Merckel posição firme na defesa da estabilidade financeira da Europa. Que aceitaram, a contra-gosto, para disciplinar as periferias e evitar males maiores.

Dentro de cinquenta anos, a história poderá ter sido a do avanço para um verdadeiro governo económico da Europa, para uma estrutura mais federal, mas também deverá ter sido a da recuperação da capacidade nacional em sectores-chave da economia, como a soberania alimentar, muito em vista das graves crises que se anunciam para as próximas décadas em virtude da explosão da procura nos países emergentes. Para um país como Portugal, que já importa 70% do que come, o ciclo da crise pode dar lugar ao ciclo da dependência irremediável.

Marcos Ferreira

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