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Um Português ao Acaso

O inesperado encontro com uma figura menor do imaginário pátrio, mas nem por isso menos interessante do que as de primeiro plano, encher-nos-ia a semana de curiosidade e imaginação. O eminentíssimo cardeal Dom Miguel da Silva, bispo de Viseu, de quem o autor destas linhas tivera já alguma notícia, surgiria ao acaso da leitura de uma biografia recente de Leonardo Da Vinci, envergando as suas esplêndidas vestes talares, e exercitando uma sabedoria da existência, porventura mais laica do que sacra, que o distinguiria do rebanho dos restantes purpurados. Nascido em Évora em 1480, bem poderia Dom Miguel da Silva oferecer tema a um romance para o grande público, recheado de lances, e com certeza tão aceitável como esses memoriais, mediocremente esgalhados, de reis e rainhas, que de repente se abateram sobre os escaparates das nossas livrarias.

Elemento de uma exígua tipologia de portugueses cosmopolitas, entre os quais transitam personagens como Dom Luís da Cunha, ou o cavaleiro de Oliveira, Ribeiro Sanches, ou o marquês de Soveral, ou até a própria marquesa de Alorna, Dom Miguel da Silva honrar-se-ia desde logo com a animadversão de Dom João III, o Beato, que em vão o mandaria assassinar, e que o expulsaria do Reino, não sem antes lhe retirar nacionalidade, isto porque manobrara o príncipe da Igreja, infelizmente sem sucesso, no sentido de que não consentisse o papa na introdução do Santo Ofício em Portugal. E como bastas vezes acontece escancarar-se-lhe-iam de imediato as portas do paraíso terreal, o mesmo que permite a quem o entrevê o carpe diem que nos salva de tédios e desesperos. No seu palácio romano de San Callisto Sua Eminência passaria a receber a nata da intelligentsia da época, sempre animado pelo gosto da fruição dos alimentos do mundo, e do diálogo de civilizada companhia. E assim homenageava ele a dignidade que Paulo III lhe concedera, justamente a de cardeal de Santa Maria in Trastevere.

Construtor de jardins, amigo de antigualhas, e não pouco propenso às exaltantes decocções alquímicas, Dom Miguel da Silva recortaria uma dessas presenças que nos cativam, nem demasiado cintilantes para nos originar o temor, nem por excesso enfadonhas para nos merecer a indiferença. Registe-se a propósito a espontaneidade quase infantil com que nos descreve uma das estâncias da sua residência, “As paredes desta sala”, confidencia-nos ele, “estão riscadas de sinistros rostos, e de desenhos em papel, entre os quais se inclui um que representa um macaco, a contar histórias a uma multidão de ratazanas que atentamente o escutam”.

E não havendo conduzido ao extremo o seu pacto com Lúcifer, nem pretendendo candidatar-se à legião dos canonizados, livrar-se-ia o excelente Dom Miguel da Silva, o que constitui razão maior para dele nos lembrarmos, de integrar a mais nefanda das categorias. Referimo-nos àquela a que pertencem as boas pessoas, as quais, não sendo carne, nem peixe, e amiúde nem sequer vegetal, nunca assumem a responsabilidade por suas monstruosas e vulgares patifarias.

Por: Mário Cláudio

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