1. Há muito que se houve dizer que o poder real, mesmo nas democracias representativas ocidentais, já não pertence aos governos nacionais, mas sim aos círculos de poder transnacionais ou multinacionais, em particular aos círculos financeiros. A coisa, dita assim, parece bastante banal e, por isso, parece que já não quer dizer nada. A palavra globalização, de tão usada, também já perdeu, aparentemente, a sua força explicativa. Como se a nossa vida já decorresse naturalmente em ambiente global, funcionasse com categorias globais e estivesse orientada para esse imenso sistema global sem fronteiras, sem centro e sem periferias. Mas a verdade é que, embora pareça, ainda não é assim, pelo menos naquilo que considero fundamental. Sobretudo porque, constatando-se que a globalização é um facto comprovável – veja-se, por exemplo, a Rede, como espaço público universal -, a maior parte de nós ainda continua a ler esta globalização com os olhos de quem permanece excessivamente amarrado a um olhar localizado, ou seja, a um olhar localmente focado. Em boa verdade, hoje já nem sequer se trata de pensar globalmente para agir melhor localmente: trata-se, isso sim, de agir globalmente para melhor pensar localmente. Só que para agir globalmente é necessário internalizar esse território sem fronteiras, pensá-lo com categorias de alcance universal e navegar nele sem direcção aparente. Na verdade, o que se torna difícil neste registo é produzir discurso sem destinatário, discurso sem fronteiras e no interior de uma dialéctica sem retorno, até porque essa tarefa implica que o discurso tenha pretensões de validade universal, se coloque naquele plano que os filósofos costumam designar por transcendental. Vejamos o caso da Rede. Quando publicamos um texto na Rede, ele automaticamente entra num espaço editorial universal, sem fronteiras e sem retorno possível. Claro, os limites podem estar na língua usada ou na complexidade conceptual do discurso. E, todavia, quem quer que disponha dos instrumentos linguístico e conceptual poderá aceder livremente a ele. Foi com consciência desta dinâmica que eu próprio decidi fazer sempre uma introdução em espanhol a todos os textos que publico no meu Blogue. O importante era que esta introdução pudesse abrir uma porta mais ampla por onde entrassem leitores de todo o mundo e que ela aludisse também à própria posição de partida do autor: produzir sem destinatário (interlocutor) e sem retorno obrigatório.
2. Mas esta é apenas uma ínfima parte da resposta consciente ao problema mais vasto da lógica globalitária que nos invade de forma imperativa e cada vez mais intensamente. O que quero sublinhar é que esta lógica pode invadir-nos cada vez mais sem que os nossos dispositivos cognitivos sejam capazes de a internalizar se ainda estiverem moldados num outro registo: o local e o da relação sujeito-objecto ou emissor-receptor. É por isso que, mesmo quando usamos abundantemente a lógica da globalização e a verbalizamos, poderemos não ter saído ainda de um registo local, territorial, fronteiriço e interlocutório. Na velha teoria da ciência um dos postulados era o de que o discurso científico era um discurso sem sujeito. No discurso global, o postulado é o de que não existe um interlocutor para um discurso produzido no interior de um sistema sem centro nem periferias.
3. Mas houve um facto avassalador, também no plano cognitivo, que funcionou aos olhos de todos nós como indutor compulsivo da lógica globalitária sobre a relação local: as sentenças inapeláveis das agências internacionais de Rating sobre as finanças nacionais. De repente, as notações destas agências (globais) passaram a funcionar como estranguladoras financeiras dos países (locais) que apresentavam contas públicas mais deficitárias, ao provocarem subidas incomportáveis nos juros da dívida pública e da dívida externa. Esta situação viria a obrigar os Estados nacionais a adoptarem medidas tão drásticas que foi possível lê-las como uma verdadeira colonização dos territórios políticos nacionais. Ou seja, o que se verificou, com uma nitidez que nunca fora alcançada, foi uma sobredeterminação directa das políticas nacionais pela vontade das agências financeiras internacionais, com fundamento num saber técnico tão dogmático como insindicável e com efeitos disruptivos tão fortes sobre os sistemas financeiros que acabariam por confiscar as próprias soberanias nacionais. Ou seja: como uma notação financeira internacional pode determinar o quotidiano do mais anónimo cidadão da mais recôndita aldeia do interior de Portugal! No território global, uma simples notação financeira parece valer mais que um sofisticado exército nacional!
4. Este caso, que afectou Portugal de forma directa e abrupta, é um exemplo absolutamente evidente da presença da lógica globalitária nas nossas vidas, a um ponto tal que já não é possível continuar a agir com os instrumentos conceptuais de uma visão simplesmente local do mundo. De forma mais simples: a lógica globalitária é hoje uma tão importante variável que não pode deixar de estar incorporada no nosso sistema de apreensão cognitiva do mundo.
Por: João de Almeida Santos