1. A crise financeira que continua a investir os países ocidentais ganhou uma tal dimensão que passou a condicionar os velhos Estados europeus naquelas que são as suas principais funções vitais. Por exemplo, índices financeiros públicos problemáticos (sobretudo a dívida pública e o défice) estão a induzir taxas de juros de tal monta que acabam por condicionar a própria soberania política destes países, transformando a «interdependência» numa inaceitável confiscação da soberania.
2. A verdade é que a resposta à crise pelos Estados nacionais, em muitos países ocidentais, acabou por fazer disparar os principais índices das finanças públicas, elevando o défice e a dívida pública, mas também a dívida externa para níveis incomportáveis a médio prazo. Tal situação haveria de levar as Agências de Rating a baixarem os índices das notações relativas a estes países, provocando um aumento automático das taxas de juro nos mercados financeiros internacionais e gerando, com isso, efeitos disruptivos sobre as finanças nacionais, públicas e privadas, ou até o atrofiamento da normal vida democrática destes países. O perigo invocado é o incumprimento dos compromissos financeiros assumidos nos mercados de capitais e, em consequência disso, novas e incomportáveis taxas de juros que acabem por levar à intervenção do Fundo Europeu de Estabilização Financeira e do Fundo Monetário Internacional – o que já aconteceu com a Grécia e a Irlanda – para financiar estes países a taxas mais toleráveis, mas impondo medidas drásticas refinanciamento público interno, de contenção orçamental e de rigoroso controlo das finanças públicas. Perante a ameaça de esta situação alastrar a países como Portugal, Espanha, Bélgica e Itália, onde os indicadores das finanças públicas dispararam, a União Europeia iniciou um processo de intervenção, através do Banco Central Europeu, nos mercados e ensaia novas medidas que possam impedir um eventual colapso da Zona Euro ou mesmo da própria União. O mês de Março será decisivo neste processo. E esta foi uma situação que ninguém tinha previsto, sobretudo na radicalidade das suas consequências políticas. De facto, de forte turbulência já não se fala só a propósito de países como a Grécia, a Irlanda ou Portugal. Fala-se também de gigantes como a Espanha e a Itália e de um país com problemas internos muito graves e com uma dívida pública tradicionalmente muito elevada, a Bélgica. São, por isso, países a mais para podermos pensar que se a situação alastrar não irá ter gravíssimas consequências sobre o Euro e sobre a União. E a verdade é que se a União não tomar medidas fortes no sentido de um aprofundamento e de um enrobustecimento institucional (político-institucional, fiscal, orçamental, etc.), continuando numa tímida lógica de pequenos passos, arrisca-se a falir como projeto. Tanto mais que as profundas mutações que se estão a verificar na cena internacional – e que, tal como a crise financeira mundial, ninguém conseguiu prever – passarão também a exigir uma política externa europeia muito mais sólida, robusta, atenta e influente do que a que tem tido até aqui.
3. A verdade é que os processos verdadeiramente revolucionários que se estão a verificar no Magreb e no Médio Oriente (do Egipto, à Tunísia, à Líbia, ao Bahrein, ao Iémen, etc.) podem constituir-se como autênticas Caixas de Pandora extremamente perigosas para o equilíbrio do próprio continente europeu se não forem objeto de um consistente acompanhamento político tendente a favorecer o que de extremamente positivo representa o derrube de regimes cleptocratas de má memória (os valores de que já se fala a respeito de Kadafi são astronómicos). Até porque sabemos que o fundamentalismo islâmico está sempre à espreita de mais uma oportunidade para se instalar sob a forma de regime político.
4. E se refletirmos com alguma profundidade sobre os fundamentos estruturais da crise financeira internacional e sobre a mecânica que tornou possível estes movimentos políticos que estão a abalar a geometria política do mundo árabe, veremos que as mudanças que se começaram a verificar na civilização ocidental a partir dos anos ’80 do século passado viriam a ter um enorme peso no desencadear destes fenómenos. Por exemplo, a mobilização de milhares e milhares de cidadãos nos países hoje em convulsão não é alheia ao uso dos instrumentos facultados pela Internet e pelas redes móveis, mais concretamente, não é alheia ao poder que hoje exibem as redes sociais, impossíveis de controlar com os velhos instrumentos de controlo político usados pelos regimes autoritários de matriz clássica. Bem conhecemos o esforço gigantesco que a China está a fazer para manter a Rede sob a vigilância permanente dos seus milhares e milhares de especialistas em redes de informação. Como também conhecemos a crise que se instalou entre o governo chinês e os dirigentes do motor de busca Google, precisamente por causa dos controlos. Também se sabe que o regime Líbio já desligou a Internet e que a caça ao telemóvel é aí desesperada.
5. De facto, estamos a assistir a uma aceleração da história e a passar rapidamente para uma nova fase da história da humanidade, com novas formas e novos conteúdos, com um registo temporal mais intenso e mais rápido e uma dissolução crescente das fronteiras, com uma nova ideia de espaço e com uma nova forma de posicionamento do indivíduo singular na sociedade. Mas talvez ainda estejamos excessivamente encapsulados em instituições construídas para a velha lógica da civilização industrial moderna. O problema, todavia, é que, se o velho está a desaparecer, o novo ainda não ganhou verdadeiramente forma, mantendo-se apenas como movimento, poderoso, sim, mas somente movimento. Precisamente como está a acontecer no mundo árabe. É por isso que urge pensar com profundidade o novo curso da história.
Por: João de Almeida Santos