Arquivo

Um cavaleiro da esperança

Notícias do Bloqueio

Dois escritores, Fernando Namora e Jorge Amado, para retratarem homens excecionais, aqueles que praticam heroísmos de comum humanidade, definiram-nos como Cavaleiros da Esperança. Tomo-lhes hoje a expressão para dizer que o João Mesquita foi também um deles.

Há duas semanas, o departamento de Jornalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, realizou uma jornada sobre Jornalismo e Cidadania, um tributo à memória do João Mesquita, o meu presidente, que foi decerto o melhor de nós todos na disponibilidade para a ação cívica e sindical em louvor da liberdade de expressão como respiração primordial do jornalismo e dos jornalistas.

Num país dos assassinatos post mortem, através do esquecimento, não estranhei que o acontecimento tivesse sido reduzido pelos medias a um pesado silêncio e ignorado, ostensivamente, pelos próprios jornalistas, que também parece terem perdido a memória. E, no entanto, seria útil, no contexto das inquietações do tempo que passa, pararmos um pouco para pensarmos na exemplaridade da sua ação como presidente do Sindicato dos Jornalistas, do seu combate contra a prostituição da palavra escrita ou falada, cada vez mais refém do negócio da comunicação, contra a unidimensionalidade crescente dos padrões informativos que a concentração tentacular da propriedade dos medias produz, da sua fala contra a chantagem do medo que paira, hoje, como fantasma real pelas redações — tudo questões que ele antecipadamente identificou como sinais do tempo perigoso que aí vinha.

À distância do tempo, as suas ideias e a sua ação projetam-se sobre a matriz da atualidade portuguesa, onde a tentação do controle da informação pelo sistema e a diluição das públicas virtudes em favor dos vícios privados não têm parado de se apurar, numa promiscuidade, com formas hoje tão peritas que, como no poema de Sophia, “não podem sequer bem descritas”.

A sua conceção de jornalismo entroncava numa ideia de serviço público e de causas, quer dizer, representava um compromisso assumido com a realidade social: a matéria da informação convergia, ou devia convergir, sempre, numa atenção essencial à condição humana, aos universos de margem dos humilhados e ofendidos, que os critérios editoriais, subjugados agora aos interesses dominantes, tendem a tornar invisíveis, aparentemente sob a desculpa que a informação deve ser sobretudo um espetáculo alimentado até à exaustão pela fulanização da sociedade portuguesa. Ele sorria desse catecismo que conduzia à “carnavalização da política”, como um dia lhe chamou Boaventura Sousa Santos, e à visão mistificadora e caricatural da própria realidade.

O João verberava sempre, com a sua pedagogia serena, a sua ilimitada paciência para explicar as coisas, a corrida instalada nos jornais entre a informação e a catástrofe, sublinhando que na especificidade portuguesa essa obsessão culturalmente menor e provinciana era a catástrofe do sensacionalismo que envenena a pureza do jornalismo. O interesse público era o seu grande compromisso. Aí plasmava o critério seletivo da realidade que, no fundo, é o que verdadeiramente define e consubstancia a informação que se produz. Quando muitos escondiam esse propósito, por perigoso e aparentemente romântico, fora de um tempo dominado por um capitalismo selvagem, o João Mesquita, sempre a pisar o chão comum da cidadania, gostava de falar em jornalismo cívico, aquele jornalismo que se faz com “empenho do coração”, para me socorrer de um verso de Eugénio de Andrade.

Esse aceno a uma responsabilidade comunitária na forma do jornalismo olhar para si e à sua volta decorria de uma sensibilidade humanista, que via homem como o centro de todas as coisas, e de uma formação cultural e política que compreendia a informação como exercício pleno da liberdade de expressão, elemento fundamental para interpretar as aspirações da humanidade ou contribuir para a existência de um mundo um pouco mais habitável. Este pensamento ou esta filosofia da arte de informar sustentava-se, como é bom de ver, em valores éticos, em que a liberdade nunca poderia ser contaminada pela chantagem da auto-censura ou do medo, que agora parecem recursos para manietar jornalistas, essa gente que muitos decisores gostariam definitivamente de ver transformada numa espécie de papagaios agrilhoados ao pensamento único e aos interesses dominantes.

O João Mesquita entendia a palavra e a escrita, como fermentos de liberdade. Era intransigente sobre tudo o que revelasse interferências na área editorial das redações, e, também, contra o jogo viciado de gestores, ungidos no altar de um capitalismo sem margens, que foram generalizando no tecido da informação um jornalismo precário e analfabeto, em que os jornalistas se transformam gradualmente numa espécie de reserva de mão-de-obra barata, com o cutelo do desemprego suspenso sobre as suas cabeças pensantes. Ele tinha consciência aguda desta situação e bateu-se contra ela com uma coragem que, aliás, os mastins do capital não lhe perdoaram, nunca. Mas tinha razão. Hoje, também o medo de existir, para utilizar a expressão do Prof. José Gil, está dentro da maioria das redações, isto é, no coração dos jornais, com a precariedade do emprego por agenda e o despedimento, por horizonte.

Se alguma coisa nos ensina o legado cívico e cultural do João Mesquita é que o jornalismo é combate que todos os dias se renova pela dignidade humana, por uma sociedade onde a felicidade seja uma coisa materializável no quotidiano, e não apenas uma utopia que os horizontes em que fecham os nossos dias já não nos deixam sonhar. A exemplaridade de vida que o João nos deixou, impõe-nos, também, uma linha de princípios não expropriáveis pelas circunstâncias, a liberdade como valor absoluto e a certeza de que não é possível viver sem ideias, como um dia Antero perguntou aos esbirros que queriam proibir-lhe o direito a falar em voz alta.

Por: Fernando Paulouro Neves

* Jornalista, ex-diretor do “Jornal do Fundão”

Sobre o autor

Leave a Reply