Sobre a sua vida, chovia como na rua: uma chuva contínua e deserta. Desde que nasceu, só não lhe foi tirado o que a fazia sofrer. Tudo o resto lhe era negado. E mesmo aquilo que parecia ser a seu favor apenas existia para que depois pudesse sentir mais fatalmente a sua falta.
Casara com um homem que lhe dava silêncios e insultos. Um dia, logo após o nascimento do filho, o marido adoeceu de um mal longo, e ela, tanto como ele, submeteu-se à doença, cuidando-o. Passava o dia e a noite a ouvi-lo clamar o seu nome, juntando-lhe, inalteradas, as injúrias que sempre lhe fizera, tornadas, pelo tom desesperado em que eram ditas, ainda mais cruéis, ainda mais vis. Esteve anos atada àquele grito constante e ao papel que, na doença, se atribui à mulher. Dividida entre a raiva ao marido que a maltratava e a compaixão pelo homem que sofria, a morte dele foi-lhe uma ressurreição.
Mas durou pouco tempo o alívio nessa vida recomeçada. O filho começou a percorrer as estações por onde passa o comboio alucinado da droga (“Estou agarrado”, dizia). Abandonou a escola, roubou, prenderam-no, soltaram-no, voltou a roubar, voltou a ser preso, voltou a ser solto, adoeceu, curou-se, voltou a drogar-se, voltou a roubar, voltou a ser preso, voltou a ser solto. Uma vez, pediu dinheiro à mãe. Na vez seguinte, exigiu-lho. Quando já não tinha mais para lhe dar, levou o que havia em casa para vender. Ela ainda conseguiu dinheiro para ele tentar uma cura. Tentou, voltou à droga, tentou outra cura, tornou a voltar à droga. Então, a mãe adoeceu gravemente e foi para o hospital. A casa passou a ser o lugar onde o filho se encontrava com os outros, num Casal Ventoso privativo. Ela melhorou e, ao regressar, encontrou-a devassada, devastada: houvera o princípio de um incêndio e o início de uma inundação. Reparou o que pôde e ali ansiou pela cura do filho, dividida entre o amor ao que ele fora e o ódio ao que ele era. Um dia, vieram dizer-lhe que estava a morrer. Correu ao seu encontro e voltou a pô-lo no regaço, repetindo, sem nunca a ter visto, aquela terrível aceitação da morte que Miguel Ângelo arrancou ao mármore para tornar serena a sua Pietà.
Mais só ainda, a mulher fechou-se no luto. Tornou-se silenciosa, recusando conversas com as vizinhas sobre os acontecimentos da sua vida aflita. Não deixava que a dor fosse tocada por quem a não tinha à mesma altura que ela. Recusava ser a notícia de abertura do telejornal de bolso da rua. Isso enraivecia as vizinhas (diziam: “Não tem sorte quem não a merece!”), fazia que a odiassem (acrescentavam: “Até dá azar vê-la!”). Rodeada de aversão e de desconfiança, ficou ainda mais abandonada, mais recuada, mais alheia. Vestida de preto, quando raramente saía, ia colada à parede, com os olhos no chão. Mas não havia medo ou rancor na sua face: apenas uma resignação próxima da serenidade.
Essa serenidade era a periferia do seu centro de tristeza. Atormentada pelo mundo, uniu-se a si mesma contra ele. Nessa aliança consigo, não havia divisão, fuga, fenda ou ruptura. Apenas defesa, resistência, soberania. E identidade: inteira, íntegra e intacta, fez da tristeza a sua coroa e o seu trono, a janela para olhar o dia, a lança para vencer a noite. Habituada à fatalidade do mal, a esperança tornou-se-lhe um mal maior: insuportável e ofensiva. Esmagou-a com o pé que esmaga uma víbora. Tudo o que faz da vida o que habitualmente é – a felicidade nas pequenas coisas e a esperança nas grandes – falava-lhe numa língua estrangeira, indecifrável. A única língua que compreendia era a que dizia a tristeza, com as suas palavras extintas e duras. Era a esse sol apagado que ela se aquecia.
A tristeza tornou-se-lhe uma procura, uma exactidão, uma firmeza. Sobre ela, reconstruiu a alma, com ela alimentou o corpo, por ela não se deixou morrer. Ela foi a fortaleza que a protegeu de tudo: do sofrimento, da humilhação, do desespero, da solidão. Tornou-se-lhe um novo sangue, que lhe percorria as veias a uma velocidade muda. Abriu-lhe um caminho e trouxe-lhe a única esperança que não a envergonhava. Deu-lhe o que ela nunca tivera: um Eu e a sua posse.
Era na tristeza que recordava o marido e o filho, lançando-os de novo contra si. Com ela, resistia aos olhares que a desprezavam. Nela, achou o arco para a sua seta. E encontrou libertação, vingança, justiça e salvação, fazendo-as coincidir. Tornou-a um filtro mágico, um relógio que não se atrasa, um acordo com o mundo. Olhou para a tristeza e viu nela o lenço de Verónica do seu rosto. E foi como se lhe desse um nome de alegria.
Por: José Manuel dos Santos