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Três perguntas sobre muçulmanos

Tresler

1. Porque é que os muçulmanos (alegadamente) nos odeiam tanto?

Não é de certeza por sermos ricos ou seletos que os terroristas vêm estoirar bombas à nossa porta. Os países de onde vêm são, eles mesmo, países abastados. Se analisarmos bem, são sempre questões de território e de controle político do território que estão em causa e não tanto a questão religiosa (veja-se a eterna Palestina). A religião, coitada, é só a capa para toda esta estratégia dos grupos radicais constituídos após a invasão e esfrangalhamento do Iraque em 2003. Invasão pelo Ocidente, com os Estados Unidos à cabeça, por causa das célebres “armas de destruição massiva” supostamente na posse de Saddam. Na Síria e nos países do Norte de África foi a “primavera árabe” que deu os seus frutos azedos. O Iraque, até à chegada dos americanos, tinha-se especializado em conflitos com o exterior (Irão e Koweit) mas nunca tinha tido quaisquer conflitos internos, muito menos com terrorismo. O território é visto sempre como algo de sagrado pelos muçulmanos e, aconteça o que acontecer, uma intervenção ocidental ou a presença militar será sempre vista como uma ingerência externa ou como a colocação ao lado de uma das forças internas em conflito. Outros dizem que é por sermos vizinhos, por termos guardado ressentimentos da presença árabe na Europa e que quanto mais próximos mais as desavenças são possíveis (é nas famílias, em proximidade, portanto, que se dão as maiores enormidades). Na verdade não conflituamos com o animismo, o hinduísmo ou o budismo.

A ligação umbilical entre ensinamento religioso e poder político, que culminou na revolução islâmica no Irão, assinala a grande distância a que nos situamos destas comunidades islâmicas, no entanto tão próximas de nós na geografia. Mas, se pensarmos um pouco, diríamos que a presente crise é também um espelho de uma fase anterior da construção europeia. Basta pensarmos na época das guerras religiosas nos séculos XVI e XVII, com a Guerra dos 30 anos a dizimar um quarto da população alemã. A procura de identidade dentro da religião continua a ser uma realidade fundamental para os muçulmanos (já o foi para os europeus), tornando a vivência da religião mais um ato de pertença do que um ato de escolha, como os europeus defendem hoje.

2. A religião deles é mesmo marada?

A religião islâmica, como a cristã, é de carácter universal e proselítico, isto é, o objetivo é atingir todo o mundo. Mas ao longo da história a religião islâmica foi quase sempre tolerante relativamente à convivência com as outras, como aconteceu durante alguns séculos na Península Ibérica. Coisa que não se passou relativamente à postura dos cristãos face aos seguidores de Maomé na Hispânia e face aos judeus chegados às suas fronteiras em grande quantidade. Quando no fim da Idade Média os árabes são expulsos da Península, eles regressam a alguns dos seus países mas pela mesma altura em Constantinopla os turcos não expulsam os cristãos ortodoxos, que aí se mantêm. Isto advém do facto de que muitas das normas do Islão podem ser adaptadas à realidade do contexto em que se desenvolve esta religião. Embora o Islão seja muito mais normativo que o Evangelho, com regras concretas a cumprir para orientar os crentes na sua vida pessoal e social, essas orientações foram durante muitos anos adaptadas a novas situações. A poligamia, por exemplo, embora permitida e prevista no Corão, é largamente desaconselhada por outros princípios.

No entanto, a velocidade a que o próprio catecismo do islamismo se transforma é quase zero se o compararmos com as revisões teológicas quase permanentes no cristianismo. A sociedade ocidental cristã, pela própria natureza dos processos políticos desenvolvidos a partir do renascimento e do iluminismo, aceitou ir intervindo de forma paulatina no regulamento das normas sociais controladas pela religião e na fuga dessas normas aos preceitos religiosos. No islamismo, o literalismo (ou seguimento literal dos textos sagrados) continua no entanto a dominar a retórica dos líderes religiosos sem esforços de exegese por aí além. Mas não temos nós do lado de cá fenómenos marginais idênticos de rejeição da interpretação livre da Bíblia? Basta pensar nas religiões evangélicas americanas com os fenómenos das seitas, as declarações criacionistas e de vez em quando um massacre a marcar as suas atitudes de vivência à margem. É um sinal de que é dentro do Islão que as coisas irão “mexer” nos próximos anos.

3. Os terroristas suicidas batem bem da bola?

A origem social dos bombistas suicidas, com gente de formação universitária e família constituída e estável entre os terroristas, põe-nos os cabelos em pé. Porque será que estes malucos se põem a pôr bombas quando podiam perfeitamente estar integrados e participar “positivamente” na sociedade? Se as respostas fossem unívocas não havia razão para esta pergunta. Mas a crise instalada, económica mas sobretudo de valores, a falta de fundamentos fortes a que as pessoas se possam agarrar, nomeadamente em meio estrangeiro e de adaptação difícil, a pressão dos media nas sociedades tradicionais, deixam gente informada e formada disponível para “aventuras identitárias” que consideramos ignóbeis.

Rui Zink, na sua obra mais recente (“Osso”), apresentada recentemente na Guarda, desconstrói a figura de um terrorista apanhado a passar uma bomba no avião em que desembarca. No interrogatório e nas torturas que se lhe seguem, o terrorista é capaz de empatizar com o inquiridor, mantendo com ele uma relação aberta sobre os temas que o terrorista deseja, já que é ele que conduz a conversa, provando que «a conversar as pessoas podem entender-se». Consegue mesmo o feito de levar as autoridades a prender o inquiridor por estar a “deixar-se enrolar” pelo terrorista. Este acaba por concluir que «o século XXI é o século do terrorismo. É a terceira maior indústria do mundo, (…) o motor da economia, o guardião da democracia». Será que a sociedade democrática do século XXI precisa mesmo do terrorismo para se justificar?

(Vários, “Islão – Guerras sem fim”, Cad. D. Quixote, 2015; Rui Zink, “Osso”, Ed. Teodolito, 2015)

Por: Joaquim Igreja

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