Arquivo

Três mil e três

Tendo as celebrações do Quarto Milénio como pretexto, apresento ao excelentíssimo auditório uma breve reflexão sobre os textos resgatados dos antigos arquivos, os quais têm levantado algumas perplexidades, pondo em causa muitas das certezas com que a historiografia tem vivido nos últimos séculos.

Datam estes textos do ano 2003 e incidem num assunto regional, relacionado com um território-nação designado como Portugal. De acordo com a nossa equipa de tradutores e hermeneutas, a questão teria suscitado algumas polémicas e teria sido bastante relevante no período e região mencionados: trata-se, ao que conseguimos apurar, da edificação de dez locais de peregrinação e culto, referidos com designações tão díspares como catedrais ou estádios, dedicados a uma divindade (culto?) um pouco difusa e, à luz dos conhecimentos actuais, dificilmente classificável, tendo em conta as várias leituras e teses em confronto. Falamos de uma actividade designada como futebol, embora alguns documentos da época insistam nos termos a bola ou desporto-rei.

Ao que nos é sugerido pela leitura cruzada de outra documentação da época, esta religião teria o beneplácito do estado, embora estatutariamente vigorasse a separação entre os poderes secular e temporal. Algumas interrogações nos assaltam: esta religião estaria organizada segundo uma hierarquia ou tratar-se-ia de um conjunto de cultos locais votados a divindades diversas? Não sabemos. Por um lado há uma complexa rede de referências a federação, divisões, liga e super liga, que sugerem a organização centralizada do culto, mas em contrapartida deparamo-nos com inúmeras referências a clubes, que indiciam a tese de organizações isoladas e, tudo o indica, antagónicas.

Outra indagação a que os nossos estudiosos não conseguem dar resposta prende-se com o objecto de culto: aqui, a confusão ainda é maior, pois as fontes são por demais contraditórias para que possamos, com alguma certeza, determinar uma resposta. Para alguns, o golo seria o mistério da fé, o centro da liturgia, consistindo na deposição de um objecto esférico no interior de um espaço (baliza) demarcado por redes. Mas existem outras leituras que nos fazem duvidar da sua efectiva importância, pois o debate entre as várias igrejas (ou clubes) centrava-se na idolatria aos seus oficiantes (jogadores) e aos bispos de cada culto regional. Há inclusivamente abundante literatura referindo a existência de um Papa no norte do território. O que nos parece bizarro, pois tanto quanto nos é dado saber, essa entidade existia apenas num local chamado Vaticano. Fica-nos igualmente a perplexidade da prática, bem documentada, de homens feitos que se dedicavam à curiosa actividade de pontapear uma coisa esférica sob o escrutínio dos árbitros (anjos do mal?), circundados por milhares de outros homens que se entregavam apaixonadamente a recriar a linguagem dos símios. Um rito de retorno? Um culto aos ancestrais primatas?

Retomando a questão inicial, da edificação de dez templos dedicados a este culto, a polémica referida surge pelos elevados custos da sua edificação, sendo aparentemente o estado o maior financiador dessa obra gigantesca. Ora, sendo o estado, por definição, alheio às actividades religiosas, isentando-as inclusivamente de obrigações fiscais, porque suportaria tão elevada despesa? Não conseguimos descortinar uma resposta.

Em conclusão, o estado da ciência neste domínio é, como se deduz, de quase total ignorância. Sabemos apenas que os seguidores destes cultos continuavam a tradição guerreira das três grandes religiões monoteístas, lutando entre si, chegando mesmo a confrontos mortais, em nome do mesmo deus futebol. Uma hipótese que arrisco: este culto emergente não constituiria uma evolução de uma das religiões referidas, a qual na eminência de perder influência se renovou, integrando alguns aportes pagãos (cânticos guerreiros e pinturas faciais)? São novas questões a que apenas o estudo e a investigação poderão dar resposta.

Muito obrigado.

(Comunicação apresentada no congresso da Sociedade de Altos Estudos de Anacronismo Comparado e Religião Criativa).

Por: Jorge Bacelar

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