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Transporte de luxo

observatório de ornitorrincos

Todas as pessoas que se abastecem frequentemente nas estações de serviço assustam-se com o aumento diário dos preços: 1,10 €, 1,20 €, 1,25 €. E isto é a tabela dos pastéis de nata. A gasolina está muito mais cara.1

Os portugueses estão naturalmente preocupados com o custo do combustível, porque começa a estar afectado um dos direitos naturais de que nos falou Hugo Grócio, depois de meia garrafa de tinto velho: “Todo o ser humano tem o direito a possuir um carro com dois contos2 de gasolina no depósito.” Este preceito aparece também na Constituição da República Portuguesa, no artigo 875º, alínea t): “O tempo levado a percorrer a distância entre Lisboa e o Porto deve ser tendencialmente inferior ao de um intervalo para publicidade na TVI.” É neste artigo constitucional que o Governo se apoia para construir o TGV, também conhecido como “Teimosia dos Gajos Velhinhos”.

Jefferson teorizou a procura da felicidade como um direito inalienável, que ficaria consagrado na constituição americana, ao lado de outros princípios fundamentais como o direito à liberdade de expressão ou a obrigação de libertar Paris de uma invasão alemã duas vezes por século. O automóvel é uma expressão real dessa felicidade. E tirar macacos do nariz enquanto se espera pelo sinal verde num semáforo é o seu corolário.

O preço alto do combustível está a mudar alguns hábitos dos portugueses. Por exemplo, se os militares quiserem protestar contra qualquer coisa vão ter de o fazer a pé, ao contrário do que aconteceu, e estou a citar um exemplo à sorte, na Primavera de 1974. Além disso, as chaimites são tão antigas que já não se fabrica a gasolina que usavam.

O valor do litro de combustível é agora tão elevado, que o governo propôs que nas bombas de gasolina se afixasse o custo em euros por meio litro. Dessa forma, a 95 Sem Chumbo3 voltava a custar 70 cêntimos. Seria como reviver aqueles dias já longínquos em que Mário Soares ou Cavaco Silva se candidatavam à Presidência da República.

Os portugueses acreditam que faz parte das atribuições intrínsecas da Humanidade possuir três coisas: uma casa, um carro e uma doença crónica. A casa é de tal forma uma obsessão, que alguns adolescentes, às escondidas dos pais, chegam a depositar numa conta Poupança-Habitação o dinheiro que os pais lhes dão para comprar a erva ou o haxixe. Todos são proprietários. A posse de bens imobiliários não distingue classes em Portugal. É o seu tamanho. Enquanto as famílias proletárias vivem em apartamentos com quartos de dimensões de um caldo Knorr Galinha, os mais abastados possuem casas com divisões que poderiam albergar umas cem pessoas ou a Simara e a Heloísa Miranda ao mesmo tempo.

A vantagem das casas sobre os carros começa a ser cada vez maior. Em casa, excepto em casos de perversão sexual acentuada, a manivela das mudanças não se espeta nos locais mais dolorosos nem há vidros eléctricos que se fecham por toques involuntários nos comandos, provocando casos graves de falta de circulação do sangue nos pés. Além disso, se ficarmos sempre em casa, o preço da gasolina não afecta a nossa vida. A não ser, claro, que a queiramos incendiar. Mas ao preço a que está o barril de petróleo, o mais certo é o dinheiro do seguro não dar nem para pagar o bidão de gasolina.

EU VI UM ORNITORRINCO

Os netos de Marx

Trupe desavinda, são já mais de cem os “verdadeiros candidatos da verdadeira esquerda verdadeiramente socialista” a candidatar-se a Belém. Soares excluído, claro.

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1 Primeiro parágrafo com ajuda substancial de Dave Barry e da pastelaria portuguesa.

2 Hugo Grócio errou por não prever a entrada em vigor da Moeda Única.

3 Por coincidência, esta era também a alcunha de uma ex-namorada da adolescência.

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