Arquivo

Torrentes de escrita

Extremo Acidental

É comum repetir a ideia de que a página em branco é o maior pesadelo de quem escreve. Desconheço os pesadelos dos escritores a sério, mas eu acordaria muito mais sobressaltado se sonhasse com Tonicha, uma festa do Bloco ou dois Pinóquios gémeos.

Poderá haver noites em que o inconsciente me leva a imaginar sacrifícios astecas ou coisas ainda mais aterradoras, como desfiles de Carnaval ou a Liza Minelli na noite dos Óscares. Mas na manhã seguinte eu lembro-me tanto do que terei sonhado durante a madrugada como Pedro Passos Coelho se lembra do que disse na campanha eleitoral.

Para escrever todas as semanas e evitar o demónio da página branca, tenho utilizado com relativo êxito o método clássico de passos sucessivos, usando letras para formar palavras, as palavras para criar frases e as frases para dizer idiotices.

Parece agora que me perco em considerandísticas elucubrantinas (Mia Couto também inventa palavras e tem o prémio Camões), mas discorro apenas sobre a possibilidade borgesiana de mil macacos teclando furiosa e aleatoriamente poderem escrever um texto interessante e inteligível. Eu tenho tentado e bem se vê que não tenho conseguido.

O drama dos escritores é a sua mania de quererem fazer sentido. Se Beckett, em vez de “Dentro em breve estarei apesar de tudo bem morto finalmente”, tivesse começado o romance por “Não tarda nada um castanheiro azul senta-se aqui e depois a chuva arrefece”, talvez não ocupasse o mesmo lugar na história da literatura, mas com certeza teria ido jantar mais cedo.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

Sobre o autor

Leave a Reply