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Termidor

1. D. Januário Torgal Ferreira, capelão das Forças Armadas, excomungou o Governo da república, onde pululam, segundo ele, um séquito de diabinhos sempre prontos para o mal. Mas impõe-se vária questões. Alguém já ouviu o prelado pronunciar-se sobre as dificuldades da Igreja em afirmar-se numa relação de proximidade com a comunidade? Alguém já o ouviu dealbar sobre as respostas que a Igreja deve fornecer num mundo global e onde o individualismo emerge triunfante? Temo que a resposta seja negativa. No entanto, ele opina sobre tudo e todos, como se fosse uma reserva moral que não é, e com um conhecimento sustentado e esclarecido da realidade que realmente não tem. Curiosamente, durante o consulado socrático, ninguém o ouviu emitir um som que fosse. Quer-me parecer que a sua propensão para incontinência verbal se deve mais à fisiologia e a problemas de digestão, como diria Nietzsche. A sua ascendência encontra-se nos abades miguelistas que proliferaram e agitaram a província profunda no séc. XIX. Ou então daqueles prelados que, após o terramoto de 1755, predicavam pelos escombros de Lisboa com o dedo em riste e culpando os males do “progresso” pela tragédia!… O major-general D. Januário Torgal Ferreira, e entertainer episódico da vida pública nacional, remeteu-se depois a um silêncio dourado, em tons púrpura, ainda que toldado pela acrimónia majestática. O que terá levado o Sr. Capelão a tamanha abnegação? Afazeres inadiáveis com as suas ovelhas guerreiras? A pratica de certas virtudes cristãs, como a humildade e o recato? Dar a outra face? Acerto na medicação para a azia? Ninguém sabe. Louvemos o silêncio de D. Januário. Encaremo-lo como uma bênção divina.

2. “Que estás aqui a fazer”? “Saí de casa. Mudaram de local. As instalações, caros clientes e amigos, lamentamos o incómodo”… Para onde para onde? “Querida, vamos começar a ver casas, numa deambulação cofideana”? Claro que esta última frase é minha. Sou só e certas palavras, um temor ligeiro, quase nada, um arranhão. Tatatararara raran. “Não é nada meu doce, não é nada É só o terror a descer devagarinho, a escorrer pelas paredes”. A frase não é tua, mas também não é minha. Fica a pairar, agora que temos tudo só para nós. “Vocês sabem lá! Quero chegar depressa, quero chegar depressa”, a sede no deserto e tal. Afinal o que somos devemo-lo a isso, à… e também ao… aos… pois. A isso. “Olha, vamos dormir, sim”? Ao cansaço, sim ao cansaço. E foi a minha vez de fazer uma surpresa. A sério?

3. ter que ser qualquer coisa que não sei ser. habitar uma memória que só por distracção consigo transpor. desfilar pelas sombras até onde os frutos caem e as manhãs anunciam o doce engano. improvisar, no minuto seguinte, o abismo e a redenção. e não esperar pela hora da chegada. devagar, sempre devagar. carregando às costas a sensação de encontrar tudo a meio. fora do alcance, num limbo de indiferença. à minha espera somente um mapa incompleto. sem lugar para os meus gestos de náufrago e a minha urgência de mar. e nisto as cordas do alaúde tomando conta da paisagem gelada. nisto, os sinos anunciando a doçura dos teus passos. marcando na minha pele ternos e obscuros sobressaltos. oxalá.

4. O ofício do poeta não inclui a prova sazonal, em letra de forma, mas a desmesura do resultado, o vigor da errância. É essa a sua prova de vida, “ou o que isso seja”, dirão os que não desconhecem a maturação recatada do poema. Mas há ainda outra razão. Que se poderia nomear, à falta de melhor o “amparo do fogo”. Porquê o fogo? Mais um recurso de estilo? Mais um ingrediente de um composto inócuo? A razão é simples: deve-se lidar com ele usando de toda a parcimónia. O verdadeiro perigo está em julgar que o dominamos, que lhe adivinhamos os movimentos, as percepções, as serventias, a inteligência móvel e imprevisível. Perigo de morte, portanto. Há momentos em que ele nos convida a arder consigo, participar numa langorosa erupção do ardor. Outras, envolve-nos na vertigem da aniquilação. Todavia, fixemo-nos no que ele desvela. E então, rente à corola do silêncio, à sabedoria do mel, à dor que no caminho revela, às mãos que se acendem, escavando, é aí que saem as palavras furtivas, as palavras que buscam a obscura transparência, as palavras que estão a mais. As que queimam.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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