Arquivo

Ter-se-á descoberto o construtor do perdido órgão barroco da Sé?

Uma fotografia do órgão barroco da Sé da Guarda tirada no final do século XIX evidencia um órgão em ruínas. De acordo com o arquiteto Rosendo Carvalheira, o instrumento possuía mil tubos, o que representava na época um órgão monumental. Na fotografia são visíveis apenas quatro tubos.

É provável que a sua destruição tenha começado durante a terceira invasão Napoleónica em 1812, em que foram derrotadas as tropas luso-inglesas, o arquivo foi queimado e as igrejas espoliadas. É provável que os tubos do órgão tenham sido derretidos pelas tropas para fazer balas de mosquetes. Ao longo do período dos “mata frades”, que começou em 1834, a deterioração continuou. O que dele restava acabou por ser removido em 1898, como parte de um projeto para restaurar as características originais manuelinas e góticas e, provavelmente, porque o órgão não tinha utilidade. É quase certo que ninguém saiba o paradeiro do órgão apesar de algumas peças de talha presentes no órgão do Seminário Maior.

Quando a fotografia foi restaurada foi possível observar a caixa e os tubos do órgão em detalhe. É claro que a decoração acima não fazia parte do instrumento, mas constituía sim uma peça de talha decorativa. A caixa do órgão era menos ornamentada e facilmente identificável.

Dois mistérios sobre o órgão ainda permanecem: o construtor e o financiador.

Na época cada construtor possuía as suas próprias ferramentas para moldar os componentes dos tubos, sendo que a aparência final da fachada do órgão sugere o construtor. É assim que se pode identificar o trabalho de cada organeiro.

Entre 1719 e 1724, o órgão de Santa Cruz, em Coimbra, foi restaurado por Manoel de S. Bento Gomes de Herrera, que trabalhou em Viseu, na Universidade de Coimbra e também, provavelmente, em Arouca. A primeira comunidade e o deão da Sé da Guarda, D. Martinho, eram Cónegos Regulares de Santo Agostinho em Santa Cruz. Sempre existiu uma ligação entre estas duas instituições. Logicamente, o cabido da Sé da Guarda tornou-se conhecido pelo trabalho de Gomes, descrito ao pormenor favorável em 1726, por Dionysio da Glória, o organista de Santa Cruz. Crê-se que Gomes terá sido o construtor do órgão da Sé, mas comparando a construção dos tubos e o da fachada do órgão com os de outros construídos por Herrera, conclui-se que não são do mesmo organeiro.

Muitos órgãos construídos por D. Francisco António Solha de Guimarães (1720-1794) sobreviveram. As tubulações e as fachadas dos órgãos construídos por ele seguem designs únicos, provavelmente aprendidos quando ele trabalhava com Simon Fontanes, que construiu os órgãos da Sé de Braga, entre 1737-1739. Quando comparados os lábios, as bocas dos tubos e a fachada do órgão da Guarda, com os que foram certamente construídos por Solha, restam poucas dúvidas foi ele o organeiro responsável pela construção.

Uma informação constatada nos documentos da Sé, datados de 6 de junho, 1748, refere que o bispo D. Bernardo Osório e Sousa tinha decidido comprar um órgão a um custo de 3.770 escudos de moeda romana. No entanto, um pouco antes de 1748, o bispo referenciou que as receitas da Catedral eram muito limitadas. Onde foram então obtidos os escudos necessários? Por que não teria usado uma moeda portuguesa? O escudo não substitui o real até 1911. A referência pode ser de qualquer moeda em que tenha sido impresso o escudo ou brasão papal ou o escudo real, talvez até os réis. As referências pelo bispo a moeda romana e escudos indicam o scudo, uma unidade monetária em ouro ou prata usada pelos Estados Pontifícios até 1866. Na época, um cardeal romano recebia um salário de 4.000 scudos. Por que pagaria o bispo o órgão usando uma moeda estrangeira papal? Teria sido um empréstimo internacional, um presente de Roma, uma doação de um benfeitor desconhecido, ou poupanças dos antecessores do Cabido da Sé ou dos antecessores (a família) do bispo? Isto ainda é um mistério para resolver.

Provavelmente, o órgão da Sé da Guarda foi terminado por volta de 1750, antes dos órgãos da Sé de Lamego (1755 -57) e de outros no Norte do país. O órgão da Sé da Guarda poderá ter sido o primeiro trabalho de Solha, o organeiro mais prolífico que trabalhou no Norte do Portugal na era barroca.

P.S.: Uma fotografia do dito órgão (desmontado no fim do século XIX) pode ser encontrada no livro do José Joaquim Pinto Geada “A Música na Sé da Guarda”

(Museu da Guarda).

Wes Jordan, Brisbane (Austrália), carta recebida por email

Comentários dos nossos leitores
Suzana Rodrigues suzanarod@gmail.com
Comentário:
É notável verificar o entusiásmo e o empenho de Wes Jordan no que diz respeito à investigação sobre a arte organeira portuguesa. É de facto de louvar o seu genuíno interesse e o quanto o seu trabalho de pesquisador nos permite ter acesso a uma parte da História que nem sempre é clarividente nos tempos presentes. Obrigado ao autor.
 

Sobre o autor

Leave a Reply