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Teoria do Resíduo

Em tempo de vacas magras o itinerário do lixo largado pelos nossos semelhantes, constituindo uma alternativa às férias dispendiosas, poderá oferecer-nos muito de surpresa, de fascínio e conhecimento. Nem se vislumbra na época de Verão, quando variadas fontes de sabedoria escasseiam, melhor ensejo ao enriquecimento cultural. Pense-se na abundância de antropologia, de ciência biológica, de compreensão da mente do bicho que somos, e até de espetáculo para os cinco sentidos, que se descortina num contentor, ou para os menos temerários nos simples, e tanta vez tocantes, detritos que se espalham pelas ruas, pelas praias, e pelas florestas, que nos dispusermos a percorrer.

Esses terreiros inóspitos onde se realizam os eletrónicos festivais de Estio, se após a função não se aproveitarem para distinto efeito, prestar-se-ão à maravilha para o trabalho de campo, a empreender na área das referidas disciplinas. Ali acharemos o vasilhame de múltipla natureza, a ventoinha de plástico para o filhote, e a bandolete de lantejoulas para a princesinha, adquiridos ambos na loja dos trezentos, sem esquecer os inúmeros papéis amachucados, a anunciar o rally de donas-elviras, a propagandear o restaurante que serve bacalhau à Braga, ou a mendigar o quilo de arroz, ou de massa, para os velhinhos que não possuem meios de sobrevivência. E atrás do palco onde a banda atuou, e onde os mais sujeitos a urgentes necessidades se acocoraram no pagamento do tributo à miserável condição humanal, depara-se aqui e além com a prova de um fim de noite de amor protegido, passado enquanto os músicos embalavam o seu instrumental, e as bailarinas cuidavam do calo do dedo grande do pé.

O ubíquo lixo pátrio sustenta infindas espécies animais, quer corram elas, quer não, o risco da extinção, desencadeiam moléstias que se tratam com medicamentos esdrúxulos, também eles em embalagem que vai acrescer ao entulho, e há ainda um santinho, ou uma santinha, que verberando a indecência dos drogados que deixam seringas e colheres por toda a banda, escarra histrionicamente no solo, a manifestar o seu asco de gente como deve ser. O invólucro do gelado proclama em suma aos quatro ventos que o que nele se guarda é mais comprido do que nunca, e eis que de súbito cai da parede do coreto a placa enferrujada que conta meio século, e que pede com circunspeção, “Mantenha limpo este espaço.”

Se formos sádicos o bastante, coisa que nada custa em cenários assim, não desdenharemos de contribuir para a depressão sazonal da entrada do Outono, transcrevendo o seguinte apontamento de Leonardo Da Vinci, génio que, quando não inventava códigos de consumo literário e globalístico, também se ressentia dos seus dias maus. “Quantos e quantos existem, suscetíveis de serem descritos como meros canos de comida, produtores de excremento, enchedores de latrinas, por não terem qualquer outro objetivo no mundo!”

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